RETROATIVIDADE DA LEI N° 13.964/2019: ASPECTOS PENAIS, PROCESSUAIS E EXECUTÓRIOS
Palavras-chave. Direito penal, direito processual penal, execução penal. Retroatividade da lei penal em sentido amplo. Sistema integral de direito, processo e execução penal. Pacote anticrime. Lei n° 13.964/2019. Juiz de garantias. Acordo de não persecução criminal. Prisão preventiva. Lei favorável. Lei prejudicial.
Key words. Criminal law, criminal procedural law, criminal enforcement. Criminal law retroactivity in the broad sense. Comprehensive system of law, process and criminal enforcement. Anti-crime package. Law No. 13.964/2019. Guarantee judge. Criminal non-prosecution agreement. Pre-trial detention. Favorable law. Harmful law.
Resumo. O texto trata da retroatividade do pacote anticrime. Propõe um sistema integrado de direito penal, processo e execução penal. Propõe tratamento unitário para as questões penais, processuais penais e lei de execução. Propõe que a lei penal em sentido amplo retroage quando for favorável ao réu. Não retroage quando for prejudicial ao réu.
Summary. The text deals with the retroactivity of the anti-crime package. It proposes an integrated system of criminal law, criminal prosecution and enforcement. Proposes unitary treatment for criminal matters, criminal proceedings and enforcement law. It proposes that the criminal law in a broad sense retroact when it is favorable to the defendant. Do not retroact when it is harmful to the defendant.
1)INTRODUÇÃO
De acordo com art. 2° do CPP, “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Já o CPC (art. 14) diz que “A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”. Como se vê, ambos os Códigos asseguram igualmente: a)a aplicação imediata da lei nova; b)a validade dos atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior.
No entanto, dizer que a lei tem aplicação imediata pouco significa, já que qualquer lei é aplicável imediatamente pelo só fato de entrar em vigor. É, pois, um simples pleonasmo afirmar que a lei processual penal é imediatamente, não mediatamente, aplicável[2].
A questão fundamental é saber se a lei nova retroage, quando, como e por que retroage, e quais são as consequências concretas disso.
Uma reforma tão importante e complexa, como feita pela Lei n° 13.964/2019, que altera diversos dispositivos de direito material, de direito processual e da lei de execução penal, exigiria um tratamento cuidadoso e detalhado relativamente à vigência da lei no tempo. Mas não foi o que aconteceu, pois absolutamente nada se disse a respeito.
O Código de Processo Penal português (art. 5°[3]), por exemplo, ao dispor sobre o assunto, previu que a lei processual penal tem aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior. Além disso, dispôs que a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata puder resultar: a)o agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; b)quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo.
Embora o Código português tenha dado tratamento mais completo e adequado a esse complexo tema, temos que é preciso ir além e superar a distinção aí pressuposta, entre leis penais, leis processuais penais e lei de execução penal. Para nós, direito penal, direito processual penal e lei de execução penal são apenas nomes para designar um mesmo fenômeno: o poder punitivo estatal em seus vários momentos de incidência, isto é, o processo penal e a execução penal são o próprio direito penal em ação, implicando uma unidade essencial. Logo, os princípios que valem para o direito penal material hão de valer para todo o resto. Por isso, no particular é irrelevante a distinção entre normas penais, processuais ou normas mistas etc.
O que de fato importa é saber se a lei é favorável ou prejudicial ao investigado, réu, condenado ou apenado. Se favorável, retroage; se prejudicial, não retroage. Em resumo, quer se trate de lei penal, quer de lei processual etc., o princípio é o mesmo: a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
Em resumo, a retroatividade da lei penal (em sentido amplo) há de ser pensada a partir de uma perspectiva garantista[4].
Também por isso, a interpretação correta a ser dada ao art. 5°, XL, da Constituição, é compreender lei penal como lei penal em sentido amplo, isto é, compreensiva da lei penal em sentido estrito, da lei processual penal e da lei de execução penal[5].
Retroagir significa aqui que a lei regerá infrações penais (crimes e contravenções) cometidas antes da sua entrada em vigor, consumadas ou tentadas, não importando a data da instauração da investigação ou do respectivo processo. Não retroagir significa o contrário: que a lei só incidirá sobre os delitos praticados após a sua vigência.
Evidentemente, não seria justo nem conforme o princípio da isonomia se a aplicação da lei ficasse na dependência de ter sido proferida ou não a sentença, ainda que os crimes fossem praticados na mesma data. Assim, por exemplo, se, num caso de coautoria ou de participação, os processos tramitassem separadamente, um com mais, outro com menos celeridade[6]. Além disso, a aplicação ou não do instituto dependeria de um dado aleatório e alheio à vontade do agente: a celeridade do processo.
Retroagir não significa, porém, que os atos processuais praticados na forma da lei do tempo sejam inválidos. Como é óbvio, a validade de um ato processual só pode ser apurada segundo a lei vigente à sua época (tempus regit actum), não com base numa lei nova, inexistente quando da prática do ato.
2) Por um sistema integrado de direito penal, processo e execução penal
Como se sabe, atualmente não se discute a autonomia do processo e da execução penal relativamente ao direito penal, disciplinas que contam com sistematização, legislação, doutrina e princípios próprios, e tudo mais que a especialização ou a tecnicização do saber jurídico-penal implica.
Mas essa autonomia do direito processual penal e da execução penal é um tanto recente, porque originariamente tudo isso constituía um capítulo ou aspecto do direito penal.[7] Francesco Carrara, por exemplo, no seu programa de direito criminal (de 1859), tratou do processo penal na terceira seção da parte geral do seu curso sob o título do julgamento criminal. Carrara escreveu:
O julgamento criminal é o terceiro momento de fato em que, depois de haver regulamentado a proibição e a sanção desta proibição, se desenvolve e se completa, conforme a ciência, a função punitiva. Este terceiro assunto é mais importante que os anteriores, porque é ele que põe em contato com os seres vivos e sensíveis a palavra da lei criminal que proíbe e castiga. A proibição seria uma fantasia se não fosse seguida da sanção, e esta seria uma quimera se não fosse acompanhada do julgamento, com a subsequente efetiva execução da sentença.[8]
Daí porque autores, como Cavaleiro de Ferreira, diziam que o direito penal (em sentido amplo) compreendia o direito penal (em sentido estrito), o direito processual penal e o direito da execução penal, os quais estão interligados e sua distinção é de caráter formal ou metodológico.[9] Justo por isso, no passado estudava-se o direito penal e o direito processo penal conjuntamente, como testemunha a bibliografia jurídica com os seus livros sobre “Prática Criminal”.[10]Nesse sentido, o processo penal é uma parte do direito penal[11]. O processo é a dimensão procedimental do direito penal.
Com o passar do tempo, a unidade entre direito, processo e execução penal foi se perdendo ou sendo progressivamente superada com a especialização do saber penal, processual penal e executório. Atualmente, existe uma clara separação dessas disciplinas, a ponto de, com alguma frequência, professores de direito penal não ensinarem processo penal e vice-versa.
Apesar disso, entre direito, processo e execução penal não há independência, mas relativa autonomia, dado o caráter indissolúvel dessa relação. Afinal, não existe direito sem um processo de legitimação do direito. O direito pressupõe um poder de dizer o direito – a jurisdição[12].
Ademais, o princípio do justo processo ou do devido processo legal, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, art. 5°, LIV), tem um conteúdo a um tempo penal e processual penal, já que pressupõe a prática de uma conduta penal punível (crime ou contravenção) apurada, processada e julgada na forma da lei[13]. Sem crime, não há processo; sem processo, não há pena. Crime-processo-pena formam, pois, uma trindade-unidade.[14]
Com efeito, só por meio do processo é possível determinar, entre outras coisas: a materialidade e a autoria da infração penal, a exata definição jurídico-penal (tipificação) , o caráter doloso, preterdoloso ou culposo da ação, a ocorrência de legítima defesa, a imputabilidade, o juiz natural, a legalidade da prova e da prisão processual, a culpa ou a inocência do réu, aplicando-lhe, conforme o caso, pena ou medida de segurança.
Por fim, o processo penal nasceu como direito penal, e, em que pese a autonomia, essa relação se mantém fortíssima. Tão forte é essa relação que não seria incorreto se o chamássemos (o processo penal) direito penal processual. Mas um tal neologismo não nos ajudaria em nada.
Do ponto de vista legislativo, parece relativamente fácil distinguir direito penal e direito processual penal: o direito penal é parte do ordenamento jurídico que define os crimes e comina as penas; e o processo penal, que é uma dimensão ou desdobramento do direito penal, é a parte do ordenamento jurídico que estabelece a forma e os meios de investigação, processamento e julgamento das infrações penais, aí incluído o procedimento recursal.
O artigo 121, caput, do Código Penal, por exemplo, ao definir o crime de homicídio simples (matar alguém) e cominar a respectiva pena (reclusão, de 6 a 20 anos), é uma norma penal; já o art. 70 do Código de Processo Penal é uma típica norma processual penal:
A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.
Simplificadamente, portanto, a legislação penal diz o que é crime e qual é sua pena, enquanto a processual penal diz como investigá-lo, processá-lo e julgá-lo validamente.
Além de definir crimes e cominar penas, o direito penal dispõe sobre os princípios fundamentais que regulam a atividade penal do Estado e prevê os institutos indispensáveis ao exercício desse poder: crime, pena, dolo, culpa, autoria, participação etc.
De todo modo, a distinção é perfeitamente possível no plano da legislação. Mas mesmo aqui cabe questionar a natureza penal ou processual penal de certas normas, se penais ou processuais penais.
Afinal, também o Código Penal, que contém a legislação penal fundamental, prevê normas de caráter processual. De acordo com o artigo 100 do CP, por exemplo, a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. E é pública condicionada quando a lei exige representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça.
Ademais, nem sempre é fácil distinguir normas penais de processuais penais, como as que dizem respeito: 1) à suspensão condicional da pena; 2) ao livramento condicional; 3) aos efeitos da condenação; 4) à reabilitação; 5) à extinção da punibilidade; 6) ao perdão judicial. A indicação poderia prosseguir, citando as figuras do agente infiltrado, da colaboração premiada, dos regimes de cumprimento de pena, da prescrição, da detração penal etc.
Esses institutos têm, no mínimo, conteúdo misto: penal, processual penal e/ou executório. Caberia referir ainda a reincidência e outros com tríplice repercussão: penal (individualização da pena), processual (decretação de prisões) e executória (progressão de regime). A colaboração premiada (Lei n° 12.850/2013) pode ocorrer, inclusive, em qualquer fase (investigação, processo e execução penal), podendo acarretar o perdão judicial, a redução da pena, a suspensão do prazo prescricional, a progressão de regime etc.
É certo ainda que o atual CPP dedica todo um livro (o Livro IV) à execução das penas e medidas de segurança (art. 668 e ss).
Se é relativamente fácil, ou pensávamos que o era, distinguir direito penal de direito processual penal, de uma perspectiva dinâmica, porém, há uma tal interação entre os dois ramos do direito que a distinção parece inconsistente. Aqui a separação é mais aparente do que real.
É que o direito penal não é autoaplicável ou não é voluntariamente aplicável, ao contrário do que se passa com o direito e o processo civil. Porque somente por meio do processo é possível determinar se há ou não há um crime, quem é seu autor, se existe uma conduta típica, ilícita, culpável e punível. E, uma vez comprovada a punibilidade do crime, poder-se-á aplicar uma pena e submeter o condenado à sua execução forçada.
Não há, por conseguinte, crime sem pena, nem pena sem processo – nullum crimen, nulla poena sine iudicio. O processo é o processo de construção – ou desconstrução – jurídica do crime.[15]
Daí dizer-se que entre direito penal e direito processual penal há uma relação de mútua referência e complementariedade funcional[16]: um e outro prestam-se à definição legal da culpa penal.
Com efeito, o crime não existe a priori, mas a posteriori, por meio do processo; o processo penal é, pois, o modo constitucionalmente legítimo de realização do direito penal.[17] Realizar o direito não significa aqui condenar o réu, mas concretizar uma decisão justa, isto é, conforme a lei penal e as garantias do devido processo legal. Uma decisão justa pode, portanto, ter conteúdo variadíssimo: condenação, absolvição, anulação do processo, reconhecimento de prescrição etc.
A finalidade do processo penal é assim complexa: a condenação do culpado, a proteção do inocente, a legalidade do procedimento e a estabilidade das decisões.[18]Como é óbvio, tais fins podem se chocar, seja porque é natural que as partes advoguem teses e interesses contraditórios ou divergentes, seja porque essas finalidades são diversamente interpretáveis. Assim, por exemplo, contra a pretensão de produção da verdade processual sempre se poderá opor a ilicitude dos meios de prova, o princípio da não autoincriminação, a preclusão etc.
É importante perceber ainda que, ao recorrer à dogmática penal e processual penal, o juiz não se limita a constatar um crime e a aplicar-lhe uma pena, mas a construí-lo socialmente, afinal, o direito e, pois, o crime, não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação do fato punível não é um modo de constatar ou desvelar um direito ou um crime preexistente, mas a forma mesma de construção do direito e do crime. Porque o sentido das coisas (fatos, provas, textos etc.) não é dado pelas próprias coisas, mas por nós, ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibilidades – aí incluída a falta de sentido inclusive.
Assim, o processo, ao dispor sobre o modo como se dará a investigação, o processamento e o julgamento dos crimes, estabelece as condições de legitimação – e também de deslegitimação – da jurisdição penal, que é o poder de dizer o direito no caso concreto.
Nesse sentido, o processo penal é um continuum do direito penal, ou seja, é o próprio direito penal em ação, em movimento, razão pela qual formam uma unidade, um todo incindível. Afinal, não há direito penal sem processo penal, nem processo penal sem direito penal, pois estão logicamente implicados. O processo é, pois, o motor que põe em funcionamento o sistema penal. Não por acaso, ele é mais sensível às mudanças e reformas políticas, marcadas por avanças e retrocessos.
Justo por isso, a relação entre direito penal e processo penal não é propriamente instrumental, mas substancial[19]. Como ensinava Calmon de Passos, “não há um direito independente do processo de sua enunciação, o que equivale a dizer-se que o direito pensado e o processo do seu enunciar fazem um.”[20]
2.1) Implicações de um sistema integrado
Quais as implicações da unidade ou circularidade dessa relação entre direito penal e processo penal?
Possivelmente o mais importante é que os princípios devem incidir de modo unitário, porque os princípios penais são princípios processuais penais e vice-versa.
Assim, a vedação da prova ilícita e o princípio do juiz natural, por exemplo, não são senão o princípio da legalidade penal, embora com outro nome. E os princípios da intranscendência, nemo tenetur se detegere e ne bis in idem têm repercussão penal, processual penal e executória.[21]
Também não faz sentido tratar diversamente o princípio da irretroatividade da lei: quer se trate de norma penal, quer de norma processual, há de retroagir sempre que for mais favorável ao imputado. Não retroagirá quando lhe for prejudicial. O princípio é, pois, o mesmo: a lei (penal, processual penal etc.) não pode retroagir para prejudicar o réu.
Por fim, também a execução penal, última etapa de realização do direito penal – direito, processo e execução penal formam um continuum –, há de reger-se pelos princípios constitucionais do direito e processo penal. Assim, modificações legislativas criadas em desfavor do condenado não podem atingir as condenações por crimes cometidos anteriormente à sua entrada em vigor, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa (v. g., uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência).
Em conclusão, e contrariamente à doutrina e à jurisprudência ainda hoje dominantes, os princípios penais são também aplicáveis ao processual penal e à execução penal e vice-versa, ainda que com graus diversos de incidência. Porque os princípios penais são princípios processuais penais e vice-versa.
Afinal, direito penal, processo penal e execução penal constituem momentos de um mesmo fenômeno, que é a concretização e o exercício do poder punitivo estatal, destinados a legitimar/deslegitimar uma forma especial de violência: a pena, a qual pode variar de uma simples multa ao extremo da pena de morte, que é um caso de assassinato legal.
Em resumo, a lei penal a que se refere o art. 5°, XL, da Constituição, é a lei penal em sentido amplo.
Também por isso, o art. 2º, parágrafo único, do CP, deve ser aplicado também ao processo e à execução penal: A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
3)INTERPRETAÇÃO DA REFORMA A PARTIR DE UM SISTEMA INTEGRADO
3.1)JUIZ DAS GARANTIAS
Com a introdução do juiz das garantias (CPP, art. 3°-B), haverá doravante dois juízes: um que atuará na fase de investigação (juiz das garantias), se e quando provocado na forma da lei, e outro que funcionará durante a instrução e o julgamento do processo (juiz da instrução). As competências são excludentes. O juiz que tiver atuado como juiz das garantias ficará impedido para a instrução e o julgamento do processo. A ideia é dar mais efetividade ao princípio da imparcialidade.
Pois bem, o juiz de garantias (art. 3°-B do CPP) implica novas regras de competência e tem aplicação imediata (CPP, art. 2°), devendo incidir sobre inquéritos e processos em curso. Além disso, é mais favorável ao investigado, devendo retroagir também por isso, isto é, incidir sobre infrações penais cometidas antes de sua entrada em vigor, consumadas ou tentadas.
A retroatividade do juiz das garantias significa mais concretamente o seguinte: 1)não incide sobre processos já sentenciados, com ou sem trânsito em julgado da sentença, já que tramitaram na forma da lei vigente; logo, são válidos. Evidentemente não faria sentido anular atos processuais com base numa lei superveniente, inexistente à sua época; 2)nos processos já instaurados, sem instrução iniciada, o juiz que interveio durante a investigação ficará impedido para a instrução e o julgamento do processo; 3)nos processos com instrução já iniciada, o juiz que interveio durante a investigação ficará impedido para prosseguir no processo, apesar do princípio da identidade física do juiz. Os atos instrutórios que presidiu na forma da lei então vigente são válidos; 4)nos processos com instrução já concluída que aguardam julgamento, outro juiz proferirá a sentença, se o atual tiver atuado durante a investigação, apesar do princípio da identidade física do juiz. Também aqui os atos instrutórios são válidos porque praticados conforme a lei do tempo; 5)o juiz que tiver proferido decisão no inquérito policial ou PIC (procedimento de investigação criminal) ficará impedido para a instrução e julgamento do processo que for instaurado.
3.2)ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A lei prevê o acordo de não persecução penal (ANPP) para os crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa cuja pena mínima seja inferior a 4 anos e desde que haja confissão formal e circunstanciada (art. 28-A). Evidentemente é mais favorável ao investigado: evita a prisão cautelar e o processo, bem como a condenação criminal e seus efeitos (cumprimento de pena, reincidência etc.).
Faltar-lhe-á justa causa sempre que for o caso de arquivamento. Faltando justa causa para a denúncia, faltará justa causa para o acordo. O ANPP é uma alternativa à denúncia, não uma alternativa ao arquivamento. O juiz deve, pois, rejeitá-lo quando for manifesto o abuso do poder de acusar ou carecer de amparo legal (art. 28-A, §§4°, 5° e 7°).
Como é mais favorável ao investigado, o novo instituto: a)incidirá sobre inquéritos e processos criminais já instaurados, devendo o juiz ouvir o MP sobre o tema; b)incidirá sobre processo com sentença condenatória recorrível. Nesse caso, o juiz ou tribunal ouvirá o MP. Se proposto e celebrado o acordo, o processo ficará suspenso enquanto aguarda a sua execução. Se cumprido o acordo, o processo é extinto. Se não, o processo retomará seu curso.
A propósito, o STF (ADI 1.719-9, de 2007) deu interpretação conforme ao art. 90 da Lei n. 9.099/95 (As disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já estiver iniciada) no sentido de: a)admitir a retroatividade da lei penal mais benéfica com ou sem instrução iniciada ou que implicasse despenalização, a exemplo dos institutos da suspensão condicional do processo e da transação penal, que teriam caráter misto (penal e processual penal); b)considerar conforme a Constituição o artigo questionado quanto às normas de caráter estritamente processual penal.
O precedente faz remissão ao voto do Ministro Celso de Mello, proferido no Inquérito n° 1.055-3 Amazonas, de 1996, o qual assinalou que “as prescrições que consagram medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto à sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe à lex mitior uma insuprimível carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata”. O Ministro Celso de Mello referia-se aos institutos da Lei n° 9.099/95 (transação penal, suspensão condicional do processo etc.)
Nesse mesmo sentido, o STF decidiu que o art. 90-A da Lei n° 9.099/95 (As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar), introduzido pela Lei n° 9.839/99, ao vedar a aplicação daqueles institutos despenalizadores à Justiça Militar, era irretroativo, só podendo incidir sobre os crimes cometidos após a sua entrada em vigor. Entendeu-se que a nova regra tinha caráter processual material[22].
Apesar disso, existe precedente no sentido da não aplicabilidade da suspensão condicional do processo depois de proferida a sentença condenatória, que certamente será invocado por analogia[23].
Não vemos também porque não aplicar o ANPP aos processos com sentença transitada em julgado, ouvindo-se o MP e suspendendo-se a execução penal quando celebrado o acordo[24]. Incide o art. 2°, parágrafo único, do Código Penal:
A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Afinal, tem-se aqui, em última análise, uma novatio legis in mellius. Mais: se no caso de abolição do crime ou de atenuação da pena, a lei penal retroage, com ou sem trânsito em julgado da sentença penal, por que motivo não retroagiria na hipótese de um instituto como o acordo de não persecução penal que evita o processo penal e assim impede a eventual condenação e execução penal, com todos os efeitos penais que implicam? Também aqui fica clara a inconsistência da distinção entre normas penais, processuais penais e executórias.
3.3)REEXAME OBRIGATÓRIO DA PRISÃO PREVENTIVA E PRISÃO OBRIGATÓRIA
A reforma estabeleceu o dever de reanálise dos fundamentos da prisão preventiva a cada 90 dias (CPP, art. 316, parágrafo único). Se, decorrido o prazo legal, não houver pronunciamento judicial algum, a prisão tornar-se-á ilegal, devendo ser relaxada.
Quando o juiz ou tribunal entender que a prisão preventiva deve ser mantida, proferirá decisão, motivando a manutenção da prisão. Trata-se de uma decisão que reaprecia a anterior, acolhendo ou rejeitando seus fundamentos, acrescentando novos argumentos quando houver.
Como se trata de uma alteração favorável ao réu, tem aplicação retroativa. Assim, as prisões preventivas decretadas há mais de 90 dias deverão ser reexaminadas imediatamente ou num prazo razoável. As demais deverão ser revistas tão logo completem aquele prazo legal.
De acordo com o art. 3º-C, §2°, do CPP, o juiz da instrução e julgamento deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias. Como a lei não ressalva a prisão preventiva, segue-se que também ela deverá ser revista no prazo de 10 dias pelo juiz da instrução, ainda que não tenha decorrido o prazo legal de 90 dias da decretação da preventiva ou do seu reexame.
No entanto, é irretroativa a prisão preventiva obrigatória para condenações iguais ou superiores a 15 anos, proferidas pelo tribunal júri (CPP, 492, I, e, segunda parte), razão pela qual não pode ser aplicada aos crimes cometidos antes da sua entrada em vigor.
No particular, temos inclusive que a inovação é inconstitucional, por violação ao princípio da presunção de inocência[25].
3.4)OUTROS TEMAS DE PROCESSO PENAL
A lei contém outras inovações que beneficiam o investigado ou acusado, razão pela qual tem aplicação retroativa, tais como: 1)vedação de prisão preventiva de ofício durante a investigação; 2)transformação do estelionato (CP, art. 171, §5°) em crime de ação penal pública condicionada (antes era crime de ação penal pública incondicionada); a lei prevê exceções, porém; 3)o impedimento do juiz que conheceu da prova declarada inadmissível, em virtude de ilicitude (CPP, art. 157, §5°); 4)atuação de advogado em favor de agentes da segurança pública investigados em inquérito policiais etc. (CPP, art. 14-A); 5)a definição legal de decisão fundamentada/desfundamentada (CPP, art. 315, §2°).
Cada uma dessas alterações produz, contudo, efeitos distintos. Assim, por exemplo, as preventivas já decretadas de ofício são válidas, porque praticadas conforme a lei do tempo, devendo ser revistas a cada 90 dias, cuja manutenção dependerá de requerimento. Quanto aos inquéritos e processos relativos a crime de estelionato, a autoridade competente deverá notificar o interessado para formular representação no prazo legal de 6 meses, sob pena de extinção do feito. No item 3, o juiz ficará impedido para prosseguir no processo. No item 4, o advogado intervirá imediatamente. As novas decisões terão de se ajustar ao conceito legal de fundamentação.
Em todos os casos supra (itens 1 a 5) as sentenças já proferidas são válidas, com ou sem trânsito em julgado.
São também aplicáveis retroativamente as regras meramente procedimentais que não prejudicam ou beneficiam o investigado ou acusado. Assim, por exemplo, a tramitação direta do inquérito policial entre a polícia e o MP, bem como diversas regras sobre o procedimento da colaboração premiada.
3.5)NOVAS REGRA DE EXECUÇÃO PENAL
Aqui o princípio há de ser o mesmo: a lei retroagirá se beneficiar o condenado e não retroagirá se o prejudicar.
Alguns exemplos de irretroatividade: 1)o novo limite de cumprimento e de unificação de penas (40 anos); 2)as novas regras mais gravosas do regime disciplinar diferenciado; 3)a nova falta grave (a recusa do condenado em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético etc.); 4)o aumento do prazo (de 1 para 3 anos, passível de prorrogação) para a inclusão e permanência de preso em estabelecimento federal de segurança máxima (Lei n° 11.671/2008, 10, §1°). Quanto aos novos parâmetros de progressão de regime, há necessidade de verificar, caso a caso, se a inovação é ou não favorável ao réu.
Também aqui há regras meramente procedimentais que não causam prejuízo ao réu, devendo ter aplicação retroativa, como a execução da multa perante o juiz da execução penal (CP, art. 51).
3.6)NOVAS REGRAS DE DIREITO PENAL
Não retroagem: 1)a ampliação do rol dos crimes hediondos; 2)a nova causa de aumento do roubo com emprego de arma branca (CP, art. 157, §2°, VII); 3)a nova causa de aumento do roubo com emprego de arma de fogo de uso restrito (CP, art. 157, §2°-B); 4)a nova pena do crime de concussão (CP, art. 316), que foi aumentada; 5)os novos efeitos da sentença penal condenatória (CP, art. 91-A); 6)a nova causa suspensiva de prescrição (CP, art. 116, III): pendência de embargos de declaração ou de recursos dos tribunais superiores, quando inadmissíveis.
A lei prevê também a suspensão do prazo prescricional enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução criminal (CP, art. 116, IV). Aqui, porém, o acordo retroage no todo, não podendo ser cindido. Logo, também a nova causa suspensiva retroagirá com a celebração do acordo.
4)CONCLUSÕES
1)O direito penal em sentido amplo compreende o direito penal material, o processo e a execução penal, que são um continuum daquele.
2)Os princípios constitucionais penais incidem igualmente sobre o direito, o processo e a execução penal;
3)O princípio da irretroatividade penal (CF, art. 5°, XL) incide sobre o direito penal em sentido amplo. A lei penal a que se refere a Constituição é a lei penal em sentido amplo, compreensiva do direito penal material, do processo e da execução penal;
4)Para efeito de retroatividade da lei, é irrelevante distinguir normas penais, processuais e executórias ou mistas. O que de fato importa é saber se a lei aumenta ou diminui a proteção do acusado, se é mais ou menos garantista.
5)A lei penal (em sentido amplo) não retroage, salvo para beneficiar o réu. Logo, a lei mais protetiva (mais garantista) retroage. Não retroage a lei menos protetiva ou menos garantista.
6)A retroatividade da lei penal significa que a lei incidirá sobre infrações penais (crimes e contravenções) praticadas antes da sua entrada em vigor, consumadas ou tentadas. É irrelevante a data da instauração da investigação ou do processo;
7)Como regra, a retroatividade da lei penal não compromete ou invalida os atos processuais praticados antes dela, já que a validade do ato processual só pode ser aferida com base na lei do tempo do crime (tempus regit actum).
8)As alterações meramente procedimentais que não afetam os direitos do réu têm aplicação retroativa.
9)A previsão legal de que a lei terá aplicação imediata é um pleonasmo, já que a lei é imediatamente aplicável pelo só fato de entrar em vigor.
10)A retroatividade da lei mais favorável poderá dar-se em qualquer fase da investigação, do processo ou da execução penal. A prolação de sentença não impede a retroatividade da lei mais favorável.
[1] Paulo Queiroz é professor da UnB (Universidade de Brasília) e membro do MPF.
[2] A doutrina clássica fazia distinção entre retroatividade e imediatidade. Hélio Tornaghi dizia que: “A norma de direito judiciário penal tem que ver com os atos processuais, não com o ato delitivo. Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma da lei que lhe seja anterior, mas nada impede que ela seja posterior à infração penal. Não há, nesse caso, retroatividade da lei processual, mas aplicação imediata. Retroatividade haveria e a lei processual nova modificasse ou invalidasse atos processuais praticados antes de sua entrada em vigor”. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1977, p.174.
[3] 1 – A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.
2 – A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou
b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
[4] Ver Paulo Queiroz e Antônio Vieira. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. São Paulo: Boletim do Ibccrim. Boletim 143, outubro de 2004.
[5] Art. 5°, XL-a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
[6] Nesse sentido, José Jairo Gomes (Manifestação n° 5797/2020/JJGD/PRR 1ª Região): “Entendimento diverso implicaria afronta direta ao princípio da isonomia. Assim, e.g., duas pessoas que cometeram o mesmo delito, na mesma data, a depender do andamento processual célere ou lento do inquérito policial e processo penal, poderiam estar ou não acobertados pela possibilidade do acordo. Ou seja, onde houve o procedimento célere e já tendo havido o oferecimento da denúncia, restaria prejudicado o réu, o que é inconcebível frente ao postulado constitucional da igualdade. A afronta à isonomia seria ainda mais evidente – e grave – na hipótese de concurso de pessoas, em que um coautor ou partícipe só viesse a ser identificado posteriormente, pois, nesse caso, o denunciado não faria jus ao benefício que teria de ser oferecido ao seu parceiro no crime”.
[7] . Segundo Manzini, a cátedra de direito penal (lectura criminalis) foi instituída em Bolonha em 1509 e em Pádua em 1540. Ensinava-se, então, direito penal junto ao direito processual penal. Em 1805 Napoleão instituiu em Pávia o ensino de processo penal e civil, mas em 1808 o processo civil foi separado do penal, que voltou à cátedra de direito penal. Tratado de derecho procesal penal, v. 1. Buenos Aires: Libreria El foro, 1996, p.19. Já Luis Jiménez de Asúa afirma que “os fundadores da ciência do Direito Penal, como Fuerbach e von Grolman, na Alemanha, e Carmignani na Itália, consideravam o Procedimento penal como parte integrante do Direito Penal. Todavia, em nossos dias Pessina (Elementos, págs. 16-17) e o Padre Jerónimo Montes, se inclinam por este critério.” Tratado de derecho penal, tomo 1. Buenos Aires: Editorial Losada, 1964, p.67. De acordo com Niceto Alcalá-Zamora y Castilho, a chamada “fase científica” do processo penal teve início com a obra de Oscar Bülow, de 1868, A teoria das exceções e dos pressupostos processuais, que operou a independência do processo penal relativamente ao direito penal, já iniciada pelos judicialistas da escola de Bolonha e acentuada quando da codificação napoleônica, que difundiu o modelo de legislação separada. Estudios de teoría general e historia del proceso. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1992, tomo 2, pp.308/309.
[8] . Programa de derecho criminal, parte general. Bogotá: Temis, 1973, v. II, p. 227. Também Giovanni Carmignani, que foi professor de Carrara, referiu-se ao processo penal no livro segundo de seu Elementi di diritto criminale, cuja primeira edição é de 1.808, sob o título de Dei Giudizj Criminali (dos julgamentos criminais). Elementi di diritto criminale. Milano: Carlo Brigola editore, 1882. E Gaetano Filangieri, in La Scienza della legislazione (Nápoles, 1780), tomo 1, no livro terceiro sobre as leis criminais (Delle leggi criminali) tratou do procedimento penal (della procedura). Roma: Instituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 1984, p.385.
[9] . Manuel Cavaleiro de Ferreira. Lições de Direito Penal. Coimbra: Almedina, 2010, p.35. De modo similar, na doutrina penal portuguesa: José de Faria Costa (Noções fundamentais de direito penal. Coimbra: Coimbra editora, 2015), Germano Marques da Silva (Direito processual penal português. Universidade Católica editora. Lisboa: 2013), Maria João Antunes (Direito processual penal. Almedina: Coimbra, 2017) e Mário Ferreira Montes. Da realização integral do direito penal. In Ars Ivdicandi. Estudos em homenagem ao professor doutor António Castanheira Neves. Coimbra: Coimbra editora, 2008, v.2.
[10] . Manuel Cavaleiro de Ferreira, idem.
[11] . Figueiredo Dias, Jorge. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra editora, 1974.
[12] . Como escreve Castanheira Neves, se é certa a autonomia (normativa e dogmática) entre o direito penal material e o direito processual penal, não é menos certo que eles concorrem numa integrante unidade, aquela que encontra expressão numa relação de complementariedade. Ainda de acordo com o autor, o processo penal é a forma juridicamente válida da jurisdição criminal. Sumários de processo criminal. Coimbra: 1968.
[13] . De modo similar, Daniel Pastor. Acerca de presupuestos e impedimentos procesales y sus tendencias actuales. In Tensiones: Derechos fundamentales o persecución penal sin limites. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004. Segundo Eugênio Pacelli, o direito ao contraditório não constitui uma norma de direito processual, ainda que no processo é que se efetive e se exerça, pois toda garantia individual relativa ao due process of law tem conteúdo eminentemente material. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2016, p.371.
[14] . Isso não significa, por óbvio, que o processo deva conduzir forçosamente à condenação. Também assim deve ser entendida a afirmação de Aury Lopes Júnior de que “não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo senão para determinar o delito e impor uma pena”. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p.34.
[15] . Como escreve Manzini, o direito penal não é um direito de coação direta, mas de coação indireta (ou de justiça). O poder punitivo não pode atuar-se imediatamente, com o uso direto da força, como pode fazer, ao contrário, o poder policial. As condições são diversas e são diversos os fins. A polícia tem a necessidade de ação imediata para impedir que ocorra ou que se prolongue a perturbação da ordem. Já o poder judicial, que sobrevém quando o ilícito já se realizou, não tem essa urgente necessidade, senão que pode atuar com plena ponderação, com as cautelas e garantias da justiça. Tratado de derecho procesal penal, v. 1. Buenos Aires: Libreria El foro, 1996, p. 106.
[16] . Jorge de Figueiredo Dias. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra editora, 1974.
[17] . Nesse sentido, Júlio Maier. Derecho procesal penal argentino. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1989.
[18] . Claus Roxin. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, p.4.
[19] . De acordo com Cintra, Grinover e Dinamarco, “o direito processual é, assim, do ponto de vista de sua função jurídica, um instrumento a serviço do direito material: todos os seus institutos básicos (jurisdição, ação, exceção, processo) são concebidos e justificam-se, no quadro das instituições do Estado, pela necessidade de garantir a autoridade do ordenamento jurídico”. A teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros editores, 2014, p.59. Como observa, porém, Mário Ferreira Monte, o direito processual penal não pode ser visto como uma disciplina meramente instrumental, ainda que o seja funcionalmente em certo sentido. Se assim fosse, significaria que não lhe estaria reservado qualquer espaço criativo na realização do direito penal. Com efeito, tendo autonomia teleológica, isso significa, entre outras coisas, que, na prossecução do interesse material de realização concreta da própria ordem jurídica, o direito processual penal também conforma as restantes ciências no sentido e solução de alguns dos concretos problemas dogmáticos. Da realização integral do direito penal, p. 754/755. In Ars Ivdicandi. Estudos em homenagem ao professor doutor António Castanheira Neves. Coimbra: Coimbra editora, 2008, v.2. Também Germano Marques da Silva assinala que o processo não tem natureza meramente instrumental, mas alto significado ético e político. Direito processual penal português, cit., p. 18.
[20] . Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de processo, n° 102. São Paulo: RT, 2001, ano 26, abril-junho de 2001.
[21] . O princípio da não auto-incriminação (nemo tenetur se detegere, nemo tenetur ipsum accusare, privilegie against Self-Incrimination etc.), inerente à ampla defesa e à presunção de inocência, assegura ao suposto autor de crime (investigado, denunciado, testemunha) o direito de não produzir prova contra si mesmo. Significa que o possível acusado de infração penal pode ou não colaborar com a investigação; mas, se não quiser cooperar, ninguém poderá obrigá-lo a tanto, razão pela qual, quando houver ilegal constrangimento, a confissão ou prova assim obtida será ilícita e arbitrária a eventual prisão. O nemo tenetur tem, portanto, caráter essencialmente negativo, pois consagra um direito de não fazer, de não colaborar, mas não um direito de fazer; é assegurada, por conseguinte, uma omissão, não uma ação. Justamente por isso, não se presta a justificar condutas como destruição de provas (queima de documentos, remoção de sangue do local do crime etc.). Não fosse assim, aliás, seria possível (em tese) invocá-lo para legitimar os mais diversos crimes, a exemplo da morte da testemunha que presenciou o homicídio e a respectiva ocultação do cadáver.
[22] STF, HC n° 79.390/RJ, 1999, relator Ministro Ilmar Galvão.
[23] HC n° 74.463-0, relator Ministro Celso de Mello, de 7/3/1997.
[24] De modo similar, Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Martinelli. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. Disponível no Jota, acessado em 9/3/2020.
[25] Ver Paulo Queiroz. Direito processual penal. Introdução. Salvador: juspodivm, 2020.