1)INTRODUÇÃO
De acordo com art. 2° do CPP, “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Já o CPC (art. 14) diz que “A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”. Como se vê, ambos os Códigos asseguram igualmente: a)a aplicação imediata da lei nova; b)a validade dos atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior.
No entanto, dizer que a lei tem aplicação imediata pouco significa, já que qualquer lei é aplicável imediatamente pelo só fato de entrar em vigor. É, pois, um simples pleonasmo afirmar que a lei processual penal é imediatamente, não mediatamente, aplicável1.
A questão fundamental é saber se a lei nova retroage, quando, como e por que retroage, e quais são as consequências concretas disso.
Uma reforma tão importante e complexa, como feita pela Lei n° 13.964/2019, que altera diversos dispositivos de direito material, de direito processual e da lei de execução penal, exigiria um tratamento cuidadoso e detalhado relativamente à vigência da lei no tempo. Mas não foi o que aconteceu, pois absolutamente nada se disse a respeito.
O Código de Processo Penal português (art. 5°2), por exemplo, ao dispor sobre o assunto, previu que a lei processual penal tem aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior. Além disso, dispôs que a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata puder resultar: a)o agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; b)quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo.
Embora o Código português tenha dado tratamento mais completo e adequado a esse complexo tema, temos que é preciso ir além e superar a distinção aí pressuposta, entre leis penais, leis processuais penais e lei de execução penal. Para nós, direito penal, direito processual penal e lei de execução penal são apenas nomes para designar um mesmo fenômeno: o poder punitivo estatal em seus vários momentos de incidência, isto é, o processo penal e a execução penal são o próprio direito penal em ação, implicando uma unidade essencial. Logo, os princípios que valem para o direito penal material hão de valer para todo o resto. Por isso, no particular é irrelevante a distinção entre normas penais, processuais ou normas mistas etc.
O que de fato importa é saber se a lei é favorável ou prejudicial ao investigado, réu, condenado ou apenado. Se favorável, retroage; se prejudicial, não retroage. Em resumo, quer se trate de lei penal, quer de lei processual etc., o princípio é o mesmo: a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
Em resumo, a retroatividade da lei penal (em sentido amplo) há de ser pensada a partir de uma perspectiva garantista3.
Também por isso, a interpretação correta a ser dada ao art. 5°, XL, da Constituição, é compreender lei penal como lei penal em sentido amplo, isto é, compreensiva da lei penal em sentido estrito, da lei processual penal e da lei de execução penal4.
Retroagir significa aqui que a lei regerá infrações penais (crimes e contravenções) cometidas antes da sua entrada em vigor, consumadas ou tentadas, não importando a data da instauração da investigação ou do respectivo processo. Não retroagir significa o contrário: que a lei só incidirá sobre os delitos praticados após a sua vigência.
Evidentemente, não seria justo nem conforme o princípio da isonomia se a aplicação da lei ficasse na dependência de ter sido proferida ou não a sentença, ainda que os crimes fossem praticados na mesma data. Assim, por exemplo, se, num caso de coautoria ou de participação, os processos tramitassem separadamente, um com mais, outro com menos celeridade. Além disso, a aplicação ou não do instituto dependeria de um dado aleatório e alheio à vontade do agente: a celeridade do processo.
Retroagir não significa, porém, que os atos processuais praticados na forma da lei do tempo sejam inválidos. Como é óbvio, a validade de um ato processual só pode ser apurada segundo a lei vigente à sua época (tempus regit actum), não com base numa lei nova, inexistente quando da prática do ato.
O que aqui propomos deve ser entendido no contexto de um sistema integrado de direito, processo e execução penal, ao qual remetemos5.
2)INTERPRETAÇÃO DA REFORMA A PARTIR DE UM SISTEMA INTEGRADO
2.1)JUIZ DAS GARANTIAS
Com a introdução do juiz das garantias (CPP, art. 3°-B), haverá doravante dois juízes: um que atuará na fase de investigação (juiz das garantias), se e quando provocado na forma da lei, e outro que funcionará durante a instrução e o julgamento do processo (juiz da instrução). As competências são excludentes. O juiz que tiver atuado como juiz das garantias ficará impedido para a instrução e o julgamento do processo. A ideia é dar mais efetividade ao princípio da imparcialidade.
Pois bem, o juiz de garantias (art. 3°-B do CPP) implica novas regras de competência e tem aplicação imediata (CPP, art. 2°), devendo incidir sobre inquéritos e processos em curso. Além disso, é mais favorável ao investigado, devendo retroagir também por isso, isto é, incidir sobre infrações penais cometidas antes de sua entrada em vigor, consumadas ou tentadas.
A retroatividade do juiz das garantias significa mais concretamente o seguinte: 1)não incide sobre processos já sentenciados, com ou sem trânsito em julgado da sentença, já que tramitaram na forma da lei vigente; logo, são válidos. Evidentemente não faria sentido anular atos processuais com base numa lei superveniente, inexistente à sua época; 2)nos processos já instaurados, sem instrução iniciada, o juiz que interveio durante a investigação ficará impedido para a instrução e o julgamento do processo; 3)nos processos com instrução já iniciada, o juiz que interveio durante a investigação ficará impedido para prosseguir no processo, apesar do princípio da identidade física do juiz. Os atos instrutórios que presidiu na forma da lei então vigente são válidos; 4)nos processos com instrução já concluída que aguardam julgamento, outro juiz proferirá a sentença, se o atual tiver atuado durante a investigação, apesar do princípio da identidade física do juiz. Também aqui os atos instrutórios são válidos porque praticados conforme a lei do tempo; 5)o juiz que tiver proferido decisão no inquérito policial ou PIC (procedimento de investigação criminal) ficará impedido para a instrução e julgamento do processo que for instaurado.
2.2)ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A lei prevê o acordo de não persecução penal (ANPP) para os crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa cuja pena mínima seja inferior a 4 anos e desde que haja confissão formal e circunstanciada (art. 28-A). Evidentemente é mais favorável ao investigado: evita a prisão cautelar e o processo, bem como a condenação criminal e seus efeitos (cumprimento de pena, reincidência etc.).
Faltar-lhe-á justa causa sempre que for o caso de arquivamento. Faltando justa causa para a denúncia, faltará justa causa para o acordo. O ANPP é uma alternativa à denúncia, não uma alternativa ao arquivamento. O juiz deve, pois, rejeitá-lo quando for manifesto o abuso do poder de acusar ou carecer de amparo legal (art. 28-A, §§4°, 5° e 7°).
Como é mais favorável ao investigado, o novo instituto: a)incidirá sobre inquéritos e processos criminais já instaurados, devendo o juiz ouvir o MP sobre o tema; b)incidirá sobre processo com sentença condenatória recorrível. Nesse caso, o juiz ou tribunal ouvirá o MP. Se proposto e celebrado o acordo, o processo ficará suspenso enquanto aguarda a sua execução. Se cumprido o acordo, o processo é extinto. Se não, o processo retomará seu curso.
A propósito, o STF (ADIN 1.719-9) deu interpretação conforme ao art. 90 da Lei n. 9.099/95 (As disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já estiver iniciada), para permitir que as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do art. 5º, XL, da Constituição, aí incluídas a suspensão condicional do processo e a transação penal, que teriam caráter misto (penal e processual penal).
Existe, porém, precedente do STF no sentido da não aplicabilidade da suspensão condicional do processo depois de proferida a sentença condenatória (HC n° 74.463-0, relator Ministro Celso de Mello, de 7/3/97), que certamente será invocado por analogia.
Não vemos também porque não aplicar o ANPP aos processos com sentença transitada em julgado, ouvindo-se o MP e suspendendo-se a execução penal quando celebrado o acordo. Incide, aqui, analogicamente, o art. 2°, parágrafo único, do Código Penal:
A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Afinal, tem-se aqui, em última análise, uma novatio legis in mellius. Mais: se no caso de abolição do crime ou de atenuação da pena, a lei penal retroage, com ou sem trânsito em julgado da sentença penal, por que motivo não retroagiria na hipótese de um instituto como o acordo de não persecução penal que evita o processo penal e assim impede a eventual condenação e execução penal, com todos os efeitos penais que implicam? Também aqui fica clara a inconsistência da distinção entre normas penais, processuais penais e executórias.
2.3)REEXAME OBRIGATÓRIO DA PRISÃO PREVENTIVA E PRISÃO OBRIGATÓRIA
A reforma estabeleceu o dever de reanálise dos fundamentos da prisão preventiva a cada 90 dias (CPP, art. 316, parágrafo único). Se, decorrido o prazo legal, não houver pronunciamento judicial algum, a prisão tornar-se-á ilegal, devendo ser relaxada.
Quando o juiz ou tribunal entender que a prisão preventiva deve ser mantida, proferirá decisão, motivando a manutenção da prisão. Trata-se de uma decisão que reaprecia a anterior, acolhendo ou rejeitando seus fundamentos, acrescentando novos argumentos quando houver.
Como se trata de uma alteração favorável ao réu, tem aplicação retroativa. Assim, as prisões preventivas decretadas há mais de 90 dias deverão ser reexaminadas imediatamente ou num prazo razoável. As demais deverão ser revistas tão logo completem aquele prazo legal.
De acordo com o art. 3º-C, §2°, do CPP, o juiz da instrução e julgamento deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias. Como a lei não ressalva a prisão preventiva, segue-se que também ela deverá ser revista no prazo de 10 dias pelo juiz da instrução, ainda que não tenha decorrido o prazo legal de 90 dias da decretação da preventiva ou do seu reexame.
No entanto, é irretroativa a prisão preventiva obrigatória para condenações iguais ou superiores a 15 anos, proferidas pelo tribunal júri (CPP, 492, I, e, segunda parte), razão pela qual não pode ser aplicada aos crimes cometidos antes da sua entrada em vigor.
No particular, temos inclusive que a inovação é inconstitucional, por violação ao princípio da presunção de inocência6.
2.4)OUTROS TEMAS DE PROCESSO PENAL
A lei contém outras inovações que beneficiam o investigado ou acusado, razão pela qual tem aplicação retroativa, tais como: 1)vedação de prisão preventiva de ofício durante a investigação; 2)transformação do estelionato (CP, art. 171, §5°) em crime de ação penal pública condicionada (antes era crime de ação penal pública incondicionada); a lei prevê exceções, porém; 3)o impedimento do juiz que conheceu da prova declarada inadmissível, em virtude de ilicitude (CPP, art. 157, §5°); 4)atuação de advogado em favor de agentes da segurança pública investigados em inquérito policiais etc. (CPP, art. 14-A); 5)a definição legal de decisão fundamentada/desfundamentada (CPP, art. 315, §2°).
Cada uma dessas alterações produz, contudo, efeitos distintos. Assim, por exemplo, as preventivas já decretadas de ofício são válidas, porque praticadas conforme a lei do tempo, devendo ser revistas a cada 90 dias, cuja manutenção dependerá de requerimento. Quanto aos inquéritos e processos relativos a crime de estelionato, a autoridade competente deverá notificar o interessado para formular representação no prazo legal de 6 meses, sob pena de extinção do feito. No item 3, o juiz ficará impedido para prosseguir no processo. No item 4, o advogado intervirá imediatamente. As novas decisões terão de se ajustar ao conceito legal de fundamentação.
Em todos os casos supra (itens 1 a 5) as sentenças já proferidas são válidas, com ou sem trânsito em julgado.
São também aplicáveis retroativamente as regras meramente procedimentais que não prejudicam ou beneficiam o investigado ou acusado. Assim, por exemplo, a tramitação direta do inquérito policial entre a polícia e o MP, bem como diversas regras sobre o procedimento da colaboração premiada.
2.5)NOVAS REGRA DE EXECUÇÃO PENAL
Aqui o princípio há de ser o mesmo: a lei retroagirá se beneficiar o condenado e não retroagirá se o prejudicar.
Alguns exemplos de irretroatividade: 1)o novo limite de cumprimento e de unificação de penas (40 anos); 2)as novas regras do regime disciplinar diferenciado; 3)a nova falta grave (a recusa do condenado em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético etc.). Quanto aos novos parâmetros de progressão de regime, há necessidade de verificar, caso a caso, se a inovação é ou não favorável ao réu.
Também aqui há regras meramente procedimentais que não causam prejuízo ao réu, devendo ter aplicação retroativa, como a execução da multa perante o juiz da execução penal (CP, art. 51).
2.6)NOVAS REGRAS DE DIREITO PENAL
Não retroagem: 1)a ampliação do rol dos crimes hediondos; 2)a nova causa de aumento do roubo com emprego de arma branca (CP, art. 157, §2°, VII); 3)a nova causa de aumento do roubo com emprego de arma de fogo de uso restrito (CP, art. 157, §2°-B); 4)a nova pena do crime de concussão (CP, art. 316), que foi aumentada; 5)os novos efeitos da sentença penal condenatória (CP, art. 91-A); 6)a nova causa suspensiva de prescrição (CP, art. 116, III): pendência de embargos de declaração ou de recursos dos tribunais superiores, quando inadmissíveis.
A lei prevê também a suspensão do prazo prescricional enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução criminal (CP, art. 116, IV). Aqui, porém, o acordo retroage no todo, não podendo ser cindido. Logo, também a nova causa suspensiva retroagirá com a celebração do acordo.
3)CONCLUSÕES
1)O direito penal em sentido amplo compreende o direito penal material, o processo e a execução penal, que são um continuum daquele.
2)Os princípios constitucionais penais incidem igualmente sobre o direito, o processo e a execução penal;
3)O princípio da irretroatividade penal (CF, art. 5°, XL) incide sobre o direito penal em sentido amplo. A lei penal a que se refere a Constituição é a lei penal em sentido amplo, compreensiva do direito penal material, do processo e da execução penal;
4)Para efeito de retroatividade da lei, é irrelevante distinguir normas penais, processuais e executórias ou mistas. O que de fato importa é saber se a lei aumenta ou diminui a proteção do acusado, se é mais ou menos garantista.
5)A lei penal (em sentido amplo) não retroage, salvo para beneficiar o réu. Logo, a lei mais protetiva (mais garantista) retroage. Não retroage a lei menos protetiva ou menos garantista.
6)A retroatividade da lei penal significa que a lei incidirá sobre infrações penais (crimes e contravenções) praticadas antes da sua entrada em vigor, consumadas ou tentadas. É irrelevante a data da instauração da investigação ou do processo;
7)Como regra, a retroatividade da lei penal não compromete ou invalida os atos processuais praticados antes dela, já que a validade do ato processual só pode ser aferida com base na lei do tempo do crime (tempus regit actum).
8)As alterações meramente procedimentais que não afetam os direitos do réu têm aplicação retroativa.
9)A previsão legal de que a lei terá aplicação imediata é um pleonasmo, já que a lei é imediatamente aplicável pelo só fato de entrar em vigor.
1A doutrina clássica fazia distinção entre retroatividade e imediatidade. Hélio Tornaghi dizia que: “A norma de direito judiciário penal tem que ver com os atos processuais, não com o ato delitivo. Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma da lei que lhe seja anterior, mas nada impede que ela seja posterior à infração penal. Não há, nesse caso, retroatividade da lei processual, mas aplicação imediata. Retroatividade haveria e a lei processual nova modificasse ou invalidasse atos processuais praticados antes de sua entrada em vigor”. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1977, p.174.
21 – A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.
2 – A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou
b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
3Ver Paulo Queiroz e Antônio Vieira. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. São Paulo: Boletim do Ibccrim. Boletim 143, outubro de 2004.
4Art. 5°, XL-a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
5Paulo Queiroz. Direito processual penal. Por um sistema integrado de direito, processo e execução penal. Salvador: juspodivm, 2018.
6Ver Paulo Queiroz. Direito processual penal. Introdução. Salvador: juspodivm, 2020.