Estamos pensando em divulgar o evangelho no seu planeta para trazer-lhes a salvação.
Evangelho? Salvação? Não entendi.
Quis dizer que, não tendo os Srs. religião alguma, pretendemos ajudá-los a conhecer a Verdade da Palavra.
Verdade? Palavra? Continuo sem entender.
Explico: fomos todos, os Srs. inclusive, criados por um Deus todo poderoso, que enviou seu filho Jesus, o qual foi sacrificado para nos salvar do pecado.
(Pensando consigo mesmo: ele nada sabe sobre nós, mas é capaz de doutrinar sobre nosso destino). Acho que o que Sr. pretende divulgar entre nós é o que conhecemos aqui como Mitologia Primitiva.
Não, não é isso, eu estou falando da Verdade emanada do livro sagrado: a Bíblia.
Livro sagrado? Eu poderia vê-lo? (recebe um exemplar e lê em poucos minutos com auxílio de um tradutor).
É um texto interessante, na verdade, vários textos, compilados, recomplicados, traduzidos e retraduzidos, escritos, reescritos e revisados milhares de vezes. E remontam a épocas bem distintas entre si, e, claro, é uma obra coletiva.
Não é isso; o Sr. não entendeu; trata-se de um texto harmonioso, preciso, realista, que expressa, sem um mínimo de contradição, a mais exata palavra do Criador; tudo foi escrito sob Inspiração Divina.
Entendo. Imagino que existam centenas de livros semelhantes entre os Senhores, referindo outros deuses, inclusive.
Certamente. Mas este é o único verdadeiro, os demais são falsos ou apócrifos.
Bem, isso já é interpretação, e, convenhamos, uma interpretação um tanto ingênua e até presunçosa. Veja: para nós, o mundo está repleto de mitos de origem, e todos são falsos do ponto de vista dos fatos; e nenhum dos livros ditos sagrados resultou do talento literário de Deus, mas dos seres (Joseph Campbell. As Máscaras de Deus. Mitologia Ocidental. S. Paulo: Palas Athena, 2004).
Compreendo sua resistência inicial, afinal é seu primeiro contato com a palavra de Deus.
Talvez. De todo modo, isso é exatamente o que nós chamamos aqui de mitologia primitiva, um relato de fábulas infantis.
Que seja; ainda assim, o Sr. não estaria disposto a ouvir o conteúdo essencial das sagradas escrituras?
Claro, sou todo ouvidos.
Pois bem, antecipo que, se o Sr. se converter, será salvo do pecado e terá a vida eterna.
Vida eterna? Pecado?
Sim, exatamente, depois da morte física, como o Sr. Jesus, o Sr. ressuscitará entre os mortos e viverá para sempre, eternamente.
Acho que uma tal doutrina não tem chances de vingar entre nós.
Por que não?
É que, para nós, uma vida eterna soaria, não como salvação, mas como maldição.
Maldição?
Sim, é que podemos viver até cerca de 1.000 anos, mas costumamos, por decisão própria, morrer por volta dos 500 anos, ingerindo a pílula da morte voluntária; logo, uma vida eterna seria um castigo. É que, para nós, a morte é boa, necessária, inevitável, e não um mal a ser temido. Cremos que, como parte da natureza, tudo no mundo deve necessariamente nascer, crescer e morrer, pois do contrário a vida seria impossível ou insuportável.
E as doenças? As suas doenças serão curadas.
Doenças? Mas nós raramente adoecemos e, quando isso ocorre, a medicina nos socorre com grande êxito, em praticamente 100% dos casos. Mas estou curioso sobre a doutrina do pecado; fale-me sobre o pecado; o que é o pecado?
Em resumo, o pecado é uma violação das leis de Deus, especialmente uma violação aos dez mandamentos: não matar, não cobiçar a mulher do próximo etc.
Entendo. Entre nós, quase não existe homicídio; por isso, sequer cogitamos de criar regras para proibi-lo. De todo modo, se tal ocorrer, é possível ressuscitar a vítima por meio de transplantes ou similar, pois a nossa medicina é muitíssimo avançada. Quanto a cobiçar a mulher do próximo, não existe entre nós essa “mulher do próximo” ou “homem do próximo”, porque entre nós as pessoas são livres para disporem de seu corpo como quiserem. E embora existam relações estáveis entre nós, não existe o que os Sr. chama de casamento; e nem faz sentido a idéia de adultério. Portanto, não existindo a regra, não existe violação à regra, logo, seria inconcebível a idéia de um tal pecado. De mais a mais, a prática do sexo é entre nós um ritual sagrado ou quase sagrado, além de muitíssimo saudável; praticamos de todas as formas possíveis: tântrico, telepático, virtual etc.
Pelo que vejo, os Srs. são uns pervertidos.
Também a idéia de perversão, como a de pecado, não faz sentido entre nós. Mas não é só: proibir desejos e paixões seria uma regra artificial e contra a vida que, no máximo, nos levaria à dissimulação e à própria perversão, de sorte que a regra seria pior do que a sua violação. De todo modo, parece-nos um tanto bizarro que um Deus se ocupe de detalhes da vida sexual das pessoas e procure regrá-la.
Parece que vai ser difícil doutriná-los, mas eu não tenho dúvida de que conhecerão a Verdade e a Verdade os libertará.
Ou escravizará (disse baixinho).
O mais importante, no entanto, é que os Srs. saibam que Deus concebeu seu filho Jesus da virgem Maria, foi sacrificado para nos salvar, ressuscitou entre os mortos e é o caminho, a verdade e a vida, e, portanto, a chave para redenção de nossos pecados.
Continuo sem entender: o Sr. fala que não se deve cobiçar a mulher do próximo, mas defende um Deus que gera um filho numa mulher casada; fala de amor, e, no entanto, refere um Deus que oferece seu próprio filho inocente em holocausto. Doutrina estranhíssima (uma maluquice, pensa consigo mesmo).
Estranhíssima para alguém sem fé, mas não para quem conhece a Verdade e sabe que a Verdade liberta.
Bem, eu espero que o Sr. consiga ao menos ser ouvido na sua pregação, mas não diga que não o adverti de que semeará em solo infértil.
Veremos.