Quem adora o Cristo, o cristão, não acredita no que vê. Ele acredita no contrário do que está à vista. Ele não sente propriamente compaixão pela desgraça do crucificado, mas satisfação profunda pela salvação de si mesmo. Ele não está muito infeliz por contemplar a maldade humana de modo extremado numa crucificação; ele está, isto sim, muito feliz com o que ele acha que é a sua salvação. Nesse sentido, ele é um profundo hipócrita: finge estar com pena do outro, mas só tem pena de si mesmo; finge ter misericórdia pelo perseguido, mas só quer bajular o poderoso; finge solidariedade na desgraça, mas só que obter vantagens pessoais. A hipocrisia constitutiva do cristão corresponde à do Cristo que finge estar se deixando matar pelo próprio pai para melhor poder acabar com ele e tomar o poder que era do Velho, do Deus-pai. Assim, adorador e adorado se merecem. Viver nesse meio é nadar na hipocrisia. Que se considera virtude;
Dioniso é o deus da máscara e da celebração, mas ele se assume como tal, sendo patrono do teatro, atuando em peças: os atores são como que máscaras das paixões que ele representa. Cristo não se assume como ator, embora seja todo ele máscara. O grande mascarado é aquele que não ostenta a máscara como máscara. O grande ator não é aquele que atua no palco, mas no palanque, no palácio, no púlpito. Ele não é visto como ator. A grande atuação é aquela que não é visa como encenação, e sim como vida pura;
O crente não percebe como encenação o rito que produz o mito. Ele não vê teatro na simbologia, manipulação de sentidos e indução dos sentidos. A mímese como que desaparece como mímese. Aparenta ser o fato representado. Só este nunca aconteceu assim. Tem-se aí a mímese como imitação daquilo que não foi, e aí desaparece como mímese, pois se acredita piamente que haja não uma encenação, e sim uma presentificação, uma nova produção do evento, como se o antigo se apresentasse de novo;
Deuses são deuses porque têm poder. Se não tivessem, não seriam. E também não seriam adorados nem respeitados. Cristo não é adorado porque é um pobre miserável, pendurado numa cruz. A impotência dele é engodo, máscara que ele usa no corpo inteiro. Cristo na cruz é uma óximoron: uma união de contrários, mas uma união por montagem, em que só se enxerga uma fachada, a do crucificado. O que está por baixo, Cristo abrindo as portas do céu para os homens que nele crêem, não aprece, mas todos os cristãos supõem enxergar. O crucifixo não se abre propriamente para a infinitude, mas concentra a atenção em sua região central, onde fica o crucificado;
Cada cristão tem a convicção de que, na suprema miséria de crucificado, Cristo abre as portas do paraíso para quem o adora. Ele só está fraco na aparência. Ele tem muito poder. Quanto pior sua miséria extrema, maior seu poder interno. É um oxímoron: o mais fraco é o mais forte. Quem adora acredita que tenha imenso poder. Esse “poder” é a projeção de um desejo profundo do adorador; ter vida feliz para sempre. Ele gosta tanto de si que pensa merecer a vida eterna: misto de narcisismo e megalomania;
O judaísmo promove uma ânsia de superioridade racial, de “povo escolhido”, superior e dileto. É uma forma de narcisismo coletivo, que se manifesta sob a forma de racismo silencioso: o anti-semitismo em vários povos e épocas decorre do semitismo;
Todo estômago é um cemitério de milhões de vidas extintas pelo apetite de quem come;
A vida que não tiver a maldade de devorar vidas não sobrevive;
O “bonzinho” de barriga cheia é apenas um hipócrita. A vida é tão abundante que, para se manter, ela precisa da destruição mútua até se manter equilibrada;
Alguém derramar seu sangue por uma causa, dizia Nietzsche, não prova que essa causa seja justa, boa ou verdadeira: prova apenas que se acredita nela, nada mais.
Extraídas do prefácio feito por Flávio R. Kothe ao livro Nietzsche: fragmentos do espólio. Primavera de 1884 a outubro de 1885. Brasília: Editora UnB, 2008.