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Princípio da insignificância

Apesar de pretender se ocupar exclusivamente de condutas especialmente graves, a lei penal, em virtude de seu caráter abstrato e generalíssimo, pode alcançar condutas praticamente insignificantes, a deslegitimar a intervenção penal, motivo pelo qual a doutrina vem tentando sistematizar o que hoje conhecemos por princípio da insignificância, a fim de que o direito penal incida apenas sobre ações e omissões concretamente graves.
A incidência do princípio, aplicável, em tese, aos crimes dolosos e culposos, consumados e tentados, materiais e formais, comissivos e omissivos, de dano e de perigo etc., pressupõe a mínima significação do desvalor da ação e do resultado, e deve, por isso, levar em conta, entre outros elementos objetivos: 1)a gravidade concreta da conduta; 2)a ausência de violência ou grave ameaça; 3)a não consumação do tipo; 4)a eventual reparação do dano ou a restituição da coisa; 5)a possível perda da coisa ou produtos do crime em favor da União; 6)a aplicação de sanções extrapenais (administrativa etc.); 7)o sofrimento (legal ou ilegal) já imposto durante a investigação (prisão em flagrante etc.); 8)a desproporcionalidade da pena mínima cominada. E para aqueles que consideram relevantes aspectos subjetivos, a existência ou não de maus antecedentes, a reincidência, a habitualidade etc.
O princípio da insignificância constitui, portanto, um instrumento por cujo meio o juiz, em razão da manifesta desproporção entre crime e castigo, reconhece o caráter não criminoso de um fato que, embora formalmente típico, não constitui uma lesão digna de proteção penal, por não traduzir uma violação realmente importante ao bem jurídico tutelado.
Trata-se, por conseguinte, como diz Vico Mañas, de um critério de interpretação restritiva, fundada na concepção material do tipo penal, por cujo meio é possível alcançar, pela via judicial e sem fazer periclitar a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, apesar de formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal.1
Discute-se se o princípio da insignificância é aplicável aos crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa. Parece-nos que sim, se não para isentar o réu de pena, ao menos para eventualmente desclassificar a infração penal, a exemplo da imputação de roubo (CP, art. 157). Com efeito, não se justifica que o agente que subtraia quantia absolutamente insignificante (v. g., R$ 1,00) tenha de responder por um delito tão gravemente punível (4 a 10 anos de prisão). Mais razoável é que, afastada a acusação de roubo, o autor responda por constrangimento ilegal (CP, art. 146) ou similar.
No caso de descaminho e outros tipos penais análogos, o STF tem admitido o princípio com base na Lei nº 10.522/2002, art. 20,2 a qual previu o arquivamento das execuções fiscais de débitos de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Atualmente o valor é R$ 20.000,00, por força da portaria n° 75, de 22/03/2012 (DOU, Seção 1, de 26/03/2012, p. 22/23), do Ministério da Fazenda.
Efetivamente, tendo a União renunciado à execução forçada do crédito, por entender, possivelmente, que os custos e benefícios não justificariam a judicialização da demanda, não faria sentido algum promover a ação penal em tais casos, em razão do caráter subsidiário do direito penal, que é um plus relativamente à intervenção civil.
Mas não é o caso de insignificância, porque é, sim, significativa a quantia de R$ 10.000,00 (ou R$ 20.000,00, conforme portaria), tanto que a Fazenda Nacional renuncia só à execução judicial do crédito, mas não à cobrança administrativa, nem aos diversos constrangimentos legais cabíveis (inscrição do nome do devedor no CADIN etc.).
Além disso, se o valor de R$ 20,000,00 fosse realmente insignificante, teria de servir de parâmetro para outros crimes, a exemplo dos patrimoniais. Mas nenhum tribunal ousar ir tão longe. A hipótese é, mais precisamente, de incidência do princípio da proporcionalidade, visto que, se não é necessária/adequada a intervenção menos grave (civil), tampouco será a mais grave (penal).
Trata-se, pois, de uma providência de caráter político-administrativo (fiscal) que, embora não afete a estrutura do crime, repercute diretamente sobre a punibilidade do delito, por constituir uma causa especial de isenção de pena.
Não vemos, ademais, problema algum em admitir que essa despenalização se dê por meio de simples portaria, já que o princípio da legalidade, como vimos, constitui, histórica e constitucionalmente, uma garantia individual instituída em favor do jurisdicionado visando a evitar excessos no exercício do poder punitivo estatal.
Quanto aos crimes contra a fé pública, embora juízes e tribunais ainda relutem em admitir a adoção do princípio, alegando que nesses casos não cabe falar de insignificância, por ofensa a bem jurídico difuso, há precedente do STF, inclusive, reconhecendo essa possibilidade. E não poderia ser diferente, pois não parece razoável condenar alguém, por exemplo, a uma pena de três anos de prisão (pena mínima) por crime de moeda falsa por ter colocado em circulação quantia absolutamente irrisória.
Já se admite o princípio também em crimes militares e contra o meio ambiente, inclusive.3
Discute-se também se é possível a adoção do princípio da insignificância quando, não obstante a irrelevância jurídico-penal da ação, ficar demonstrado que o agente tem maus antecedentes, é reincidente ou há continuidade delitiva. O STF ora decide num sentido, ora noutro.
Parece-nos que, se o princípio da insignificância constitui, conforme a doutrina e a própria jurisprudência reconhecem, uma excludente de tipicidade, visto que, embora formalmente criminalizada, a conduta não traduz, em concreto, uma lesão digna de proteção penal, tal deve ser admitido independentemente da existência de maus antecedentes ou reincidência.
Com efeito, furtar R$ 1,00 (um real), por exemplo, não deixa de ser insignificante pelo só fato de o agente já ter sido anteriormente condenado ou responder a inquérito ou ação penal por outro crime.
E mesmo a continuidade no cometimento de ações insignificantes não torna a ação significativa, inclusive porque o crime continuado é, a rigor, uma forma de concurso material tratado como crime único, e, como tal, pressupõe que cada ação seja autonomamente criminosa, a fim de que os atos subsequentes sejam havidos como continuação do primeiro (CP, art. 71).
Enfim, por traduzir um problema de tipicidade, e não de individualização da pena, o princípio da insignificância deve ser reconhecido independentemente da existência de maus antecedentes, reincidência ou continuidade delitiva.
Além do mais, o STJ editou a Súmula 444, que tem o seguinte teor: “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”, vedação perfeitamente aplicável à discussão sobre a insignificância, em virtude de sua fundamentação constitucional: violação ao princípio da presunção de inocência.
Finalmente, há precedentes do Supremo Tribunal Federal condicionando a adoção do princípio aos seguintes requisitos: a)mínima ofensividade da conduta; b)nenhuma periculosidade social da ação; c)reduzidíssimo grau de reprovabilidade; d)inexpressividade da lesão jurídica.
Mas tais requisitos são claramente tautológicos. Sim, porque, se mínima é a ofensa, então a ação não é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e a ação não perigosa, em consequência, mínima ou nenhuma é a reprovação; e, pois, inexpressiva a lesão jurídica. Enfim, os supostos requisitos apenas repetem a mesma ideia por meio de palavras diferentes, argumentando em círculo.

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