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Tratamento penal da embriaguez

1)Introdução

A embriaguez é a perda total ou parcial da capacidade de autodeterminação em razão do uso de droga lícita ou ilícita. De acordo com o Código, somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade. Nos demais casos, o agente é, em princípio, culpável e punível.

Com efeito, a embriaguez pode ser voluntária (dolosa ou culposa) ou involuntária (acidental). Diz-se voluntária quando o agente faz livre uso de droga (lícita ou ilícita) e perde assim, total ou parcialmente, a capacidade de discernimento. Será dolosa – ou voluntária, segundo o Código – quando o autor fizer uso da substância com a intenção de embriagar-se; e culposa, quando, fora do caso anterior, embriagar-se por imoderação ou imprudência. E é preordenada quando o agente se embriaga com o fim de cometer crime.

Diversamente, considerar-se-á involuntária a embriaguez quando resultar de caso fortuito (v. g., desconhece que determinada substância produz embriaguez) ou força maior (v. g., é constrangido à embriaguez). Se se tratar de embriaguez involuntária completa, excluir-se-á a culpabilidade do agente que praticar um fato típico e ilícito. E se for o caso de embriaguez involuntária incompleta, hipótese em que, não obstante isso, preserva-se uma certa capacidade de autodeterminação, o agente responderá por crime, mas com pena reduzida de 1/3 a 2/3 (CP, art. 28, II, §2°).

2)Embriaguez involuntária

Conforme vimos, somente a embriaguez involuntária completa, isto é, que resulta de caso fortuito ou força maior, acarreta a exclusão da culpabilidade. Nesse exato sentido dispõe o art. 28, § 1º, do CP: “é isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Assim, somente é excluída a culpabilidade quando se provar que o agente estava ao tempo da ação inteiramente privado de discernimento em razão de embriaguez acidental, isto é, que não resultou de decisão própria.

Se se tratar de embriaguez involuntária incompleta, que ocorre quando o autor mantém certa capacidade de autodeterminação, a culpabilidade subsistirá, mas o agente fará jus à diminuição da pena de um a dois terços (CP, art. 28, § 2º): “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”

Enfim, a embriaguez involuntária completa é excludente de culpabilidade, razão pela qual isenta o autor de pena; já a embriaguez involuntária incompleta é apenas atenuante de culpabilidade, importando na diminuição da pena.

3)Embriaguez voluntária

No caso de embriaguez voluntária (dolosa ou culposa), completa ou incompleta, o agente responderá por crime, ainda que ao tempo da ação fosse inteiramente incapaz de autodeterminação, uma vez que, de acordo com o Código, não exclui a imputabilidade penal “a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos” (art. 28, II). Enfim, a embriaguez voluntária é, em princípio, penalmente irrelevante, uma vez que não isenta o réu de pena, nem a atenua.

Mas isso não quer dizer que sempre que o agente se embriagar dolosamente responderá por crime doloso, nem que o imprudente sempre responderá por crime culposo, pois em realidade responderá por crime doloso ou culposo, conforme tenha agido com dolo ou culpa, podendo ocorrer, inclusive, como é comum (v. g., crimes de trânsito), de, embora embriagado dolosamente, praticar crime culposo, bem como, embriagado culposamente, cometer crime doloso.1

Não se deve confundir, portanto, a vontade de embriagar-se com a vontade de delinquir.

Mas não só. A embriaguez voluntária não importa, necessariamente, em responsabilidade penal.

Com efeito, na hipótese de imprevisibilidade/inevitabilidade do fato, o autor não responderá penalmente mesmo que se encontre em estado de embriaguez voluntária (dolosa ou culposa, completa ou não), sob pena de responsabilização penal objetiva, situação incompatível com os princípios constitucionais penais. Assim, por exemplo, não responde penalmente o agente que vem a atropelar um pedestre imprudente que avance o sinal vermelho, se se provar a inevitabilidade do acidente, ainda que o condutor do veículo estivesse sóbrio. É que inexistirá nexo causal entre o estado de embriaguez e o acidente provocado. E mais: os crimes culposos pressupõem a criação de um risco proibido e a realização desse risco no resultado.

Enfim, a só condição de embriagado não implica responsabilidade penal necessariamente, razão pela qual o decisivo é apurar, em cada caso, se o agente se houve com dolo ou culpa.

Além disso, nada impede que o autor possa eventualmente invocar excludentes de ilicitude (legítima defesa etc.) ou de culpabilidade (erro de proibição inevitável etc.).

Em síntese: de acordo com o Código, somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade; nos demais casos, o autor é, em princípio, culpável e punível. Mas isso não significa que sempre que o agente se encontrar em estado de embriaguez voluntária será forçosamente culpável, visto que poderá se valer, em tese, de excludentes de tipicidade e de ilicitude e, inclusive, de excludentes de culpabilidade.

Consequentemente, o art. 28, II, do Código Penal, deve ser assim interpretado, a fim de evitar responsabilidade penal objetiva ou sem culpa: apesar de a embriaguez voluntária não excluir a culpabilidade, a imputação de crime ao agente embriagado pressupõe, inevitavelmente, a comprovação de todos os seus requisitos: tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Afinal, a embriaguez prova, em princípio, a embriaguez mesma, mas não a punibilidade inexorável da conduta.

Finalmente, diz-se preordenada a embriaguez – espécie de embriaguez voluntária dolosa, em que tem plena aplicação a teoria da actio libera in causa2 (ação livre na causa) –, quando o sujeito se embriaga (propositadamente) com dolo de cometer determinado delito. Uma vez provada a embriaguez preordenada, o agente, além de responder por crime doloso, terá a pena agravada (CP, art. 61, II, l), visto que a preordenação constitui uma circunstância agravante.3

E a embriaguez reconhecidamente patológica é equiparada à doença mental, aplicando-se ao inimputável a norma do art. 26 do CP.

1Convém evitar, assim, como assinala Mir Puig, o equívoco consistente em pensar que o delito cometido sob o efeito de embriaguez voluntária sempre tenha sido provocado voluntariamente (dolosamente), ou que a embriaguez culposa supõe que o delito que se comete nesse estado haja podido prever-se e se deva atribuir à imprudência. A embriaguez voluntária (não preordenada) pode dar lugar a um fato não só não querido previamente como sequer previsto ou previsível; e, do mesmo modo, a embriaguez culposa também pode motivar um fato imprevisível. Em suma: que o sujeito se tenha embriagado voluntariamente ou por imprudência não significa que, se pratica delito em tal estado, haja querido o fato nem que este era previsível, pois se pode querer ou prever a embriaguez sem querer nem ser previsível que se vai produzir a lesão de um bem jurídico (Derecho penal, cit., p. 605).

2A compreensão da teoria da actio libera in causa é controvertido. Narcélio de Queirós considerava que a teoria compreendia “os casos em que alguém, no estado de não imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever.” Teoria da “actio libera in causa”. Rio: Forense 1963, p. 37.

3De acordo com Francesco Carrara, se a embriaguez é preordenada ao delito, ou, como se disse, estudada, com razão poderá castigar-se ao culpável pelo que realizou em estado mental são, quando, com lúcida previsão e firme vontade, converteu-se a si mesmo em futuro instrumento do delito. A imputação retroage a tal instante e o que vem depois é consequência de um ato doloso; não se imputa o que fez o ébrio, mas o que fez o homem. Programa de derecho criminal, parte general, v. 1, cit., §343.

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