Os crimes sexuais constituem um dos capítulos mais interessantes e curiosos do direito penal, pleno, não raro, de paternalismo1, hipocrisia e preconceitos morais.
Aliás, no particular tão íntima é a relação entre direito e moral que é praticamente impossível precisar onde começa um e termina o outro.2 Justamente por isso, convém formular e responder, inicialmente, à seguinte pergunta, sobre os limites e fins da intervenção penal no campo da sexualidade: por que reprimir práticas sexuais, se a atividade sexual é (ainda) essencial à perpetuação da espécie? Ou, mais, por que punir algo tão necessário e útil (e mesmo prazeroso) à espécie?
A resposta mais provável seria: não se pune a atividade sexual em si mesma, mas a relação sexual violenta, não consentida ou indesejada, razão pela qual o que se busca proteger é a própria liberdade de autodeterminação sexual de homens e mulheres.3
Mas isso não é de todo exato, uma vez que em diversos momentos o legislador (no Brasil e no mundo) criminaliza, direta ou indiretamente, condutas sexuais não violentas e livremente consentidas, contrariamente à própria vontade dos sujeitos sexualmente envolvidos.
Parece-nos, pois, que, para além da autodeterminação sexual, o legislador, confessada ou inconfessadamente, pretende também ditar uma determinada moral sexual (dominante), que, segundo a sua perspectiva, seria a moral sexual saudável, honesta, digna, enfim.4
E mais, trata-se, em geral, de uma pretensão de moralização da sexualidade grandemente conservadora, anti-hedonista e pouco secular, que de algum modo vê o ato sexual como perigoso e capaz de corromper e degradar o sujeito. Cuida-se, enfim, de uma moral sexual que, a pretexto de ditar a moral sexual digna, parece não perceber que a atividade sexual é, antes de tudo, uma atividade fisiológica tão natural e necessária e prazerosa quanto qualquer outra, a exemplo de comer, beber etc.
Parece, enfim, que, apesar de tudo, o homem atual ainda se envergonha de sua sexualidade e por isso busca, com alguma freqüência, reprimir formas legítimas de manifestação da liberdade sexual ou que de nenhum modo lesionam bens jurídicos. Só assim se explica, aliás, o excesso de tipos penais sexuais e a previsão de crimes sem vítima ou mesmo irrelevantes.5
A história dos crimes sexuais é, em última análise, a história da secularização dos costumes e práticas sexuais.6 E é também uma parte significativa da repressão ao corpo e prazer, sobretudo repressão ao corpo e prazer femininos.7
De todo modo, temos que a intervenção penal no âmbito da sexualidade só faz sentido se se prestar à proteção da própria liberdade de autodeterminação sexual de adultos e à proteção do desenvolvimento pleno e saudável de crianças, adolescentes e incapazes em geral, isto é, só faz sentido quando vise a tutelar o indivíduo contra ações de terceiros (o Estado, inclusive) que violem o direito de toda pessoa humana de se relacionar ou não se relacionar sexualmente com quem quiser, quando quiser, se quiser, como quiser.8
Cumpre, por isso, não perder de vista que a dimensão sexual é apenas uma das possíveis formas de expressão da liberdade humana; logo, a liberdade (substantivo) há de vir primeiro; e o sexual (adjetivo), depois.
Afinal, os crimes sexuais são puníveis pelas mesmas razões que são puníveis os demais crimes: são condutas que importam numa grave violação à liberdade de outrem.
Consequentemente, o Estado não pode, a pretexto de afirmar a liberdade (ou dignidade) sexual, negá-la ou limitá-la sem uma justificação plausível.
Os crimes sexuais devem, por conseguinte, prestar-se a dois objetivos primordiais: proteger a liberdade individual de autodeterminar-se sexualmente e assegurar as condições necessárias ao desenvolvimento sexual pleno e saudável de crianças, adolescentes e incapazes em geral.9
E ainda que não seja o único bem jurídico tutelado, a liberdade sexual – entendida como a faculdade de toda pessoa humana de determinar-se autônoma e livremente quanto ao exercício de sua sexualidade10– constitui o interesse fundamental a ser protegido jurídico-penalmente e que deve, por isso, orientar todos os demais.
Exatamente por isso, deve ser objeto de descriminalização tudo quando não representar grave violação ao direito do próprio indivíduo de autodeterminar-se sexualmente.
Não fazem, pois, sentido, entre outros, os seguintes tipos penais: mediação para servir a lascívia de outrem (CP, art. 227), favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (CP, art. 228), casa de prostituição (CP, art. 229), rufianismo (CP, art. 230), tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (CP, art. 231), tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (CP, art. 231-A), ato obsceno (CP, art. 233), escrito ou objeto obsceno (CP, art. 234).
É que nenhuma dessas infrações importa, em princípio, numa violação grave da liberdade de autodeterminação sexual, razão pela qual hão de ser abolidas. E mais, independentemente da descriminalização aqui proposta, eventuais abusos contra a liberdade são passíveis de configuração de outros delitos (v.g., seqüestro ou cárcere privado, redução a condição análoga à de escravo etc.), especialmente no que diz respeito ao exercício da prostituição.
Finalmente, e conforme vimos (parte geral), o direito penal é a fortaleza e os canhões dos demais direitos (Alfonso de Castro), razão pela qual sua intervenção, como ultima ratio do controle social formal, há de pressupor o fracasso de outras instâncias de prevenção menos lesivas e socialmente mais adequadas.
1 Sobre o assunto, Heloisa Stellita. Paternalismo, moralismo e direito penal: alguns crimes suspeitos em nosso direito positivo. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 179, p.17-18, out. 2007.
2 Prova dessa confusão entre direito e moral está (também) no próprio tom dos comentaristas, pois em nenhum outro lugar se vê linguagem e comentários tão frequentemente duros e carregados de reprovação moral. Nelson Hungria, por exemplo, escreveu, a propósito da exploração da prostituição: “E esta é uma nota comum entre proxenetas, rufiões e traficantes de mulheres: todos corvejam em torno da libidinagem de outrem, ora como mediadores, fomentadores ou auxiliares, ora como especuladores parasitários. São moscas da mesma cloaca, vermes da mesma podridão (…). De tais indivíduos se pode dizer que são os espécimes mais abjetos do gênero humano. São tênias da prostituição, os parasitas do vil mercado dos prazeres sexuais.”. Por sua vez, Rogério Greco, referindo-se a esse mesmo trecho de Hungria, observa: “Genial a passagem escrita pelo maior penalista que o Brasil já conheceu. Se Hungria já se indignava com a existência do proxeneta tradicional, que diria ele a respeito daquele que, como ocorre nos dias de hoje, explora nossas crianças e adolescentes menores de 14 (catorze) anos? Esses, realmente, fazem parte da escória da sociedade.”. Direito Penal, cit., p. 544.
3 Jorge de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p.445) fala de autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa, relativamente aos crimes contra a liberdade sexual previstos no Código Penal português.
4De acordo com Vera Regina Pereira de Andrade, os tipos penais sexuais se prestam, em verdade, a proteger “a moral sexual dominante, e não a liberdade sexual feminina, que, por isso mesmo, é pervertida (a mulher que diz ‘não’ quer dizer ‘talvez’; a mulher que diz ‘talvez’ quer diz ‘sim’…), pois o sistema penal é ineficaz para proteger o livre exercício da sexualidade feminina e o domínio do próprio corpo”. Ainda de acordo com a referida autora, a intervenção penal é ineficaz e arbitrariamente seletiva, visto que “além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas (estupro, assédio), a mulher torna-se vítima da violência institucional (plurifacetada) do sistema penal que expressa e reproduz a violência estrutural das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classes) e patriarcais (a desigualdade de gêneros) de nossas sociedades e os estereótipos que elas criam e se recriam no sistema penal e são especialmente visíveis no campo da moral sexual dominante. Consequentemente, a criminalização de novas condutas sexuais só ilusoriamente representa um avanço do movimento feminista no Brasil ou que esteja defendendo melhor os interesses da mulher ou a construção de sua cidadania.” Sistema penal máximo x cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, pp. 100 e 86.
5 Essa obsessão por reprimir práticas sexuais é antiga. Exemplo frisante disso é o Livro V das Ordenações Filipinas (1603-1830), que punia um sem número de condutas sexuais, tais como: “dos que cometem pecado de sodomia e com alimárias”; “do infiel que dorme com alguma cristã e do cristão que dorme com infiel”; “das que dormem com suas parentes e afins”; “do que dorme com mulher virgem ou viúva que estiver em poder de seu pai”; “do que dorme com mulher virgem ou viúva honesta”; “do que dorme com mulher casada” etc.
6 A propósito do tratamento da sexualidade no Islã, escreve Ayaan Hirsi Ali: “Afirmar que a opressão das mulheres nada tem a ver com o islã e é ‘apenas’ um costume tradicional consiste numa desonestidade intelectual, numa falácia. Os dois elementos são indissociáveis. O código de honra e vergonha pode ser tribal e pré-islâmico, nas suas origens, mas é hoje uma parte integral da religião e dos costumes do islã. Os assassinatos cometidos em nome da honra afirmam aquilo que os islã também afirma: que as mulheres são subordinadas aos homens e devem manter-se como propriedade sexual deles.”. Nômade. São Paulo: Companhias das Letras, 2011, p. 238.
7 Não é por acaso que até recentemente a doutrina entendia que mulher casada não podia ser vítima de estupro praticado pelo marido; que o casamento com o estuprador ou terceiro extinguia a punibilidade; que só a mulher honesta era passível de proteção por determinados tipos; que o homem podia matar a mulher em legítima defesa da honra, em virtude de adultério etc.
8 Como assinala Jorge de Figueiredo Dias, “cada pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou ao lugar em que a elas se entrega ou ao (s) parceiro (s), também adulto (s), com quem as partilha – pressuposto que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este (s) nelas consinta (m). Se e quando esta liberdade for lesada de forma importante a intervenção penal encontra-se legitimada e, mais do que isso, torna-se necessária.”. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p.445.
9De acordo com Francisco Muñoz Conde, quanto à proteção sexual de incapazes, o que se busca proteger é sua liberdade futura, isto é, a normal evolução e desenvolvimento de sua personalidade, para que, quando adulto, decida livremente sobre seu comportamento sexual; e no caso de incapaz ou deficiente mental, evitar que seja utilizado como objeto sexual de terceiros que abusem de sua situação para satisfazer seus desejos sexuais. Derecho Penal, parte especial. Valencia: Tirant lo blanch, 2010, p.217. Apesar disso, reconhece (idem, p. 218) que, no caso de menores, o exercício da sexualidade é proibido na medida em que pode afetar a evolução e desenvolvimento de sua personalidade e produzir alterações importantes que incidam em sua vida ou em seu equilíbrio psíquico no futuro. Certo é, porém, que esse presumido prejuízo ao desenvolvimento mental saudável não está comprovado cientificamente e, inclusive, quando não existe violência, pode, ao contrário, favorecer o desenvolvimento psíquico e uma maior afetividade nas relações interpessoais futuras.
10Tomás S. Vives Antón e outros. Derecho Penal, parte especial. Valencia: Tirant lo blanch, 2010, p.223.