No caso de sucessão de leis, pode ocorrer de a nova lei ser em parte favorável e em parte desfavorável ao réu, hipótese que tem como exemplo recente a revogação da Lei nº 6.368/76 pela Lei nº 11.343/2006, relativamente ao tráfico ilícito de droga. Com efeito, apesar de a nova lei ter aumentado a pena cominada ao crime, de 3 a 12 anos de reclusão, para 5 a 15 anos de reclusão, passou a admitir uma causa de redução de pena, que não existia na lei revogada, de 1/6 a 2/3, para o réu primário, sem antecedentes criminais e sem envolvimento com organização criminosa.
Discute-se, então, se seria possível que o réu que praticou crime na vigência da Lei 6.368/76 (revogada) poderia ficar sujeito àquela pena inicial (3 a 12 anos) com a redução de pena da nova lei, por lhe ser mais favorável, havendo posicionamento da doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos, isto é, contrário e a favor da combinação.1 Aqueles que se posicionam contrariamente alegam que a combinação implicaria criação de uma terceira lei (lex tertia) e o juiz estaria assim usurpando função própria do legislador em afronta aos princípios de legalidade e divisão de poderes.
Pensamos que a assim chamada combinação é, em verdade, um caso de retroatividade parcial da lei, já que a nova lei sempre pode ser total ou parcialmente favorável ao réu, podendo inclusive ser benéfica na parte penal e prejudicial na parte processual ou vice-versa.
Pois bem, se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu, é evidente que retroagirá de forma integral; mas se o for em parte, então o caso é de retroatividade parcial da nova lei. Parece evidente assim que, se a lei deve retroagir quando for integralmente favorável, tal deverá ocorrer, com maior razão, quando o for apenas em parte, em respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior, pouco importando o quanto de benefício encerre; afinal, se a lei deve retroagir no seu todo quando mais branda, o mesmo há de ocorrer quando somente o for em parte. Ademais, o Código (art. 2º, parágrafo único) prevê a retroatividade quando a lei posterior favorecer o agente de qualquer modo, isto é, incondicionalmente, sempre que a nova lei acarretar alguma espécie de atenuação do castigo.
E ao não ser admitida a retroatividade parcial da lei nova, negar-se-á vigência ao princípio constitucional da retroatividade da lei mais favorável.2
Finalmente, aqueles que se opõem a assim chamada combinação de leis partem de uma perspectiva hermenêutica há muito superada, pois pressupõem que a interpretação depende do direito e não o contrário, que é o direito que depende da interpretação, afinal, a interpretação é a forma mesma de realização do direito (vide capítulo sobre o conceito de direito e sobre direito e interpretação).
Não existe, portanto, direito fora ou além da interpretação. Porque a interpretação é o alfa e o ômega, o começo e fim, a vida e morte do direito. O direito é interpretação.
Uma última observação: O STJ (6ª turma) decidiu recentemente no sentido de admitir a aludida combinação para o crime de tráfico praticado na vigência da Lei nº 6.368/76, a fim de que a pena aplicada (três anos) tivesse a redução de 1/3 a 2/3 prevista na nova Lei de Droga (Lei nº 11.343/2006).3
O tema permanece indefinido no STF, que ora decide num sentido, ora noutro.
1Admitindo a combinação, Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo, Damásio de Jesus, Cezar Roberto Bitencourt, Juarez Cirino dos Santos, Andrei Schmidt, entre outros. Contrariamente, Nélson Hungria, Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso etc. Recente decisão do STF admitiu a combinação. HC nº 95435/RS, rel. Min. Ellen Gracie. 21.10.2008.
2No sentido do texto, Ney Moura Teles assinala que, se a Constituição Federal manda a lei penal mais benéfica retroagir sempre, o que se pode afirmar é que apenas o dispositivo benéfico retroage, irretroativo o mais severo, uma vez que a pretensão da lei maior é que retroaja a norma mais benéfica, e não o texto legal integral, a não ser que fosse ele integralmente mais favorável. Se num texto há vários dispositivos, uns benéficos, outros prejudiciais, é claro que só aqueles retroagem. Ao combinarem os dispositivos de duas leis, o juiz não cria uma terceira lei, mas apenas obedece ao preceito constitucional, maior, que não manda a lei retroagir por inteiro, mas determina a retroatividade de todo e qualquer dispositivo legal que vier favorecer o réu. Direito Penal. Parte Geral. S. Paulo: Atlas, 2006.
3HABEAS CORPUS Nº 105.905 – SP (2008/00985728) RELATORA: MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG). CONSTITUCIONAL – PENAL – HABEAS CORPUS – TRÁFICO DE DROGAS – CRIME PRATICADO SOB A ÉGIDE DA LEI 6.368/1976 – REDUÇÃO DO ARTIGO 33, § 4º, DA LEI 11.343/2006 – NOVATIO LEGIS IN MELLIUS – RETROATIVIDADE – IMPERATIVO CONSTITUCIONAL – ORDEM CONCEDIDA PARA APLICAR SOBRE A REPRIMENDA DO ARTIGO 12 DA LEI 6.368/1976 A CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA DO ARTIGO 33, § 4º, DA LEI 11.343/2006 – REGIME INICIAL ABERTO – SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. EXPEDIDO ALVARÁ DE SOLTURA CLAUSULADO.
1. É imperativa a aplicação retroativa da causa de diminuição de pena contida no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 feita sob a pena cominada na Lei 6.368/1976, em obediência aos comandos constitucional e legal existentes nesse sentido. Precedentes.
2. Não constitui uma terceira lei a conjugação da Lei 6.368/76 com o parágrafo 4º da Lei 11.343/06, não havendo óbice a essa solução, por se tratar de dispositivo benéfico ao réu e dentro do princípio que assegura a retroatividade da norma penal, constituindo-se solução transitória a ser aplicada ao caso concreto.
3. Analisadas em favor do agente as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, cabe a modificação do regime de cumprimento de pena para o inicial aberto, de acordo com o quantitativo de pena imposto, e a substituição da pena por restritiva de direitos.
4. Ordem concedida para aplicar retroativamente a causa especial de diminuição do artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/06 sobre a pena do crime do artigo 12 da Lei 6.368/1976. Concedido habeas corpus de ofício para modificar o regime de cumprimento de pena para o inicial aberto e substituir a pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos.
Expeça-se alvará de soltura, salvo prisão por outro motivo.