De acordo com a doutrina, o bem jurídico protegido nos crimes de tráfico de droga e afins é a saúde pública, visto que o consumo de substâncias psicoativas prejudicaria a saúde dos usuários, levando-os, eventualmente, à morte, inclusive. Nesse sentido, Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi têm que “o bem jurídico protegido é a saúde pública. A deterioração da saúde pública não se limita àquele que a ingere, mas põe em risco a própria integridade social. O tráfico de entorpecentes pode ter, até, conotações políticas, mas basicamente o que a lei visa evitar é o dano causado à saúde pelo uso de droga. Para a existência do delito, não há necessidade de ocorrência do dano. O próprio perigo é presumido em caráter absoluto, bastando para a configuração do crime que a conduta seja subsumida num dos verbos previstos.”1 No mesmo sentido, Damásio de Jesus,2 entre outros.
A tese é infundada, porém. Primeiro, porque a proibição indiscriminada acaba por inviabilizar a realização de um controle oficial mínimo sobre a qualidade da droga produzida e consumida, inclusive porque as autoridades sanitárias nada podem fazer a esse respeito, em razão da clandestinidade; segundo, porque os consumidores não têm, em geral, um mínimo de informação sobre os efeitos nocivos das substâncias psicoativas; terceiro, porque o sistema de saúde (hospitais, médicos, planos de saúde etc.) não está minimamente aparelhado para atender aos usuários e dependentes; quarto, porque o próprio usuário é ainda tratado como delinqüente, e, pois, como alguém que, mais do que tratamento, precisa de castigo.
Como assinala Maria Lúcia Karam, “não são, portanto, as drogas que geram criminalidade de violência, nem são os consumidores os responsáveis pela violência dos ‘traficantes’. Consumidores são responsáveis apenas pela existência do mercado, como o são os consumidores de quaisquer produtos. Responsável pela violência é sim o Estado, que cria ilegalidade e, consequentemente, gera criminalidade e violência”.3
Finalmente, as drogas não são em si mesmas prejudiciais à saúde, tudo dependendo de quem as usa, como e quando o faz. Afinal, as drogas – lícitas ou não – são neutras, como o é um martelo ou uma faca de cozinha, que podem ser usados eventualmente (também) para ferir ou matar alguém.
Enfim, se a preocupação com a saúde pública fosse a questão política fundamental no particular, o mais adequado não seria a criminalização da produção e consumo de droga, mas a sua legalização pura e simples, à semelhança do que se passa com as drogas lícitas, mesmo porque a distinção entre umas e outras é arbitrária. Seria o caso, portanto, de tratar a droga não como problema de polícia, mas como um problema de saúde pública.
Além do mais, o tráfico é, a rigor, um crime sem vítima, porque cabe ao indivíduo (capaz), senhor que é de sua própria saúde, decidir sobre o que consumir ou não consumir. E o que não pode ser proibido pela via direta – o consumo de droga – não pode ser vedado pela via indireta – a produção e comercialização -.
John Stuart Mill escreveu, a propósito, que o “indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém, a não ser ele próprio. Conselho, ensino, persuasão, esquivança da parte de outras pessoas, se para o bem próprio a julgam necessária, são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação da conduta do indivíduo”.4
Rigorosamente, portanto, a criminalização do tráfico de droga e afins não protege bem jurídico algum. A alegação de que tutelaria a saúde pública constitui simples pretexto para legitimar uma opção político-criminal irracional, violenta e absolutamente desastrosa.
1Lei de drogas anotada. Saraiva: S.Paulo, 2009, 3ª edição, p. 86.
2Lei antidrogas anotada. Saraiva: S.Paulo, 2009, 9ª edição, pp. 79/82.
3Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas, cit., p. 41.
4 Sobre a liberdade, trad. Alberto da Rocha Barros, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 137.