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A propósito da Súmula 145 do STF

De acordo com a súmula 145 do Supremo Tribunal Federal, “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”, ou seja, “não há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimento, direto ou por concurso, de autoridade, que o faz para fim de aprontar ou arranjar o flagrante” (STF, RTJ, 98/136).

A súmula incide, portanto, sempre que a polícia instigar alguém a praticar um crime e assim surpreendê-lo em flagrante. Se isso ocorrer, o flagrante é nulo e o crime é considerado impossível, em razão da impossibilidade concreta de consumação decorrente da provocação.

Segundo Nélson Hungria, no caso de provocação (crime de ensaio), só na aparência é que ocorre um crime exteriormente perfeito, porque, em verdade, o seu autor é protagonista inconsciente de uma comédia. E, se sob o aspecto subjetivo, existe crime, o mesmo não ocorre do ponto de vista objetivo, visto que não há violação à lei penal, mas uma inconsciente cooperação para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores, ou uma simulação, embora ignorada pelo agente, da exterioridade do crime.1

A aplicação da súmula exige o concurso simultâneo de dois requisitos: 1) provocação de flagrante pela polícia; 2) impossibilidade absoluta de consumação do crime.

Inicialmente é necessário que a polícia tome a iniciativa de provocar (instigar etc.) o agente a cometer o crime, para, com tal expediente, oportunizar a prisão (v.g., policial que, fingindo ser usuário, convence o suposto traficante a vender-lhe droga ilícita, prendendo-o no ato de venda).

Há, pois, provocação sempre que a polícia intervier, direta ou indiretamente, no próprio iter criminis, praticando uma ação que leve o suspeito a cometer um determinado crime que não cometeria não fosse a atuação policial.

Mas não se deve confundir o flagrante provocado (de qual se ocupa a súmula) com o simplesmente esperado, que é aquele em que a polícia, previamente informada do crime, que não provocou, simplesmente aguarda o momento de sua execução, a fim de proceder à prisão em flagrante. No caso de flagrante esperado, a súmula não é aplicável, a atuação policial é legítima e por isso há crime punível.

A distinção entre flagrante esperado e provocado reside no seguinte: no primeiro a polícia não intervém no iter criminis, isto é, não instiga de modo algum o agente a praticar o crime. Já no flagrante provocado, ao contrário, o agente só comete o crime porque a polícia o induz a tanto, motivando-o a praticá-lo.

A súmula 145 é aplicável, por conseguinte, exclusivamente ao flagrante provocado, não incidindo sobre o esperado. O flagrante esperado é legal, enquanto o flagrante provocado é ilegal, razão pela qual o fato praticado pelo agente que atua sob provocação policial não é (como regra) punível.

Apesar de a súmula se referir ao flagrante provocado pela polícia, parece-nos que é ela também aplicável à provocação feita por não policiais (segurança privada etc.), fazendo-se analogia in bonam partem.

Finalmente, a nulidade do flagrante provocado limita-se àqueles fatos objeto da provocação, pois, relativamente a outros que independam da provocação, há, sim, crime punível, não incidindo a súmula. Exemplo: o agente é preso por vender droga a um policial que se passara por usuário, mas em seguida se descobre que sua casa servia de depósito para carros roubados. Nesse caso, a nulidade do flagrante limitar-se-á ao crime de tráfico, não atingindo o crime contra o patrimônio para o qual não concorreu a provocação policial, se bem que no âmbito processual sempre se poderá questionar a licitude da prova.

Convém notar que há precedentes do Supremo Tribunal Federal entendendo que, no caso de tráfico de droga, embora o agente não possa ser licitamente preso por venda da droga em virtude da provocação (crime impossível), tal não impediria que pudesse responder pela guarda ilícita da droga posteriormente encontrada em depósito, uma vez que constituiriam ações distintas e autônomas: vender e guardar em depósito, igualmente proibidas por lei. E antes da provocação policial já havia um crime consumado de tráfico na modalidade guardar etc.

Ocorre que o tráfico de droga, embora de múltipla ação (exportar, importar etc.), constitui crime único, motivo pelo qual o agente, caso pratique várias ações, responderá, em princípio, por uma só infração penal. Exatamente por isso, é um tanto discutível a interpretação no sentido de considerar impossível o delito quanto a uma ação (vender) e possível quanto a outra (guardar em depósito), como se não houvesse crime de múltipla ação, mas múltiplos crimes em concurso material.

Para a aplicação da súmula, além da provocação, é necessário que o crime não chegue a consumar-se.

Com efeito, se, não obstante a ação policial no sentido de evitar a consumação, o delito se consumar, haverá crime punível, visto que a incidência da súmula pressupõe a impossibilidade de consumação em razão da provocação policial. Em tese, é possível, inclusive, que também o agente policial provocador responda por crime, a título doloso ou culposo, conforme o caso.

A súmula também não incide quando a provocação tiver lugar após a consumação do crime, isto é, já na fase de exaurimento. Exemplo: um funcionário público, que exigira vantagem indevida de alguém, vem a ser preso dias depois, pela polícia, que foi previamente avisada pela vítima (que fingiu aceitar a exigência feita) sobre o ocorrido e quando faria o respectivo pagamento.

É que, por se tratar de crime formal (concussão – CP, art. 316), cuja consumação ocorre com a só exigência da vantagem indevida, tal já havia acontecido previamente, independentemente da intervenção policial, razão pela qual o recebimento do dinheiro constitui simples exaurimento. Neste caso, o crime não só é possível, como já havia se consumado antes de a policia intervir.

Enfim, a súmula não incide sempre que houver consumação do crime, quer porque a polícia não conseguiu evitá-la, quer porque a consumação ocorreu antes da intervenção policial.

Releva notar, por último, que a súmula 145 vem sendo sistematicamente criticada, havendo quem proponha a sua abolição pura e simples, por pretextar (supostamente) a impunidade de crimes graves.2

1Comentários, cit., p.107.

2Criticamente, Andrey Borges de Mendonça. Prisões e outras medidas cautelares pessoais. S.Paulo:Editora Método, 2011.

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