A neurociência promete uma autêntica revolução para os próximos anos que implicará uma mudança radical da imagem que o homem faz de si mesmo, com repercussão direta sobre o direito penal (mas não só sobre ele), especialmente no que diz respeito à culpabilidade.
Com efeito, segundo manifesto publicado na Alemanha em 2004 por 11 (onze) neurocientistas, “num período de tempo previsível, nos próximos vinte ou trinta anos, a investigação cerebral poderá alcançar a conexão entre os processos neuroelétricos e neuroquímicos, assim como funções perceptivas, cognoscitivas, psíquicas e motoras, até o ponto que será possível fazer predições bastante certeiras sobre estas conexões em ambas direções. E isso significa que devemos contemplar a mente, a consciência, os sentimentos, os atos voluntários e a liberdade de ação como processos naturais, pois todos se baseiam em processos biológicos”.1
A anunciada revolução pretende demonstrar (possivelmente), entre outras coisas, que o homem não é livre, isto é, que a liberdade de agir (ou livre arbítrio) é uma ilusão criada pela mente consciente, uma vez que todas as nossas decisões procedem de processos neuronais complexos inconscientes sobre os quais o nosso consciente ou não tem poder algum ou o tem minimamente. Pretende-se provar, assim, que aquilo que se nos apresenta como ações refletidas, conscientes, prudentes etc. é, em verdade, uma ilusão criada pela consciência2, inclusive porque o cérebro é um órgão como qualquer outro e, por essa razão, é tão determinista em seu funcionamento quanto o coração ou o fígado.3 E ninguém pode atuar de modo distinto do que de fato é, escreve Wolf Singer.4
Como assinala Francisco Rubia, “para Gerhard Roth, as decisões para nossos atos procedem do inconsciente, o que quer dizer que temos a impressão de que sabemos o que fazemos, mas, em realidade, o que o consciente faz é atribuir-se algo que não é obra sua”.5 Daí concluir Rubia que, “se literariamente, em nosso século de Ouro, Calderón (1600-1681) afirmou que a vida é um sonho, alguns neurocientistas modernos sustentam que realmente toda vida é uma ilusão”, motivo pelo qual “o livre arbítrio é provavelmente uma ilusão, mais uma ilusão entre muitas que o cérebro inventa”.6
Também por isso, nossas decisões teriam um insuperável fundo emocional, porque a racionalidade não domina nossas ações, o que significa que a interação entre o consciente e o inconsciente, entre os centros límbicos e os centros motores executivos, garante que as ações voluntárias ocorram dentro do âmbito dos sentimentos emocionas inconscientes e da parte racional cognitiva consciente de cada pessoa.7
Que semelhante perspectiva importa numa reviravolta no nosso modo de pensar e ver o mundo é evidente, já que, concretamente, isso significa, por exemplo, que os delinquentes não sabem, a rigor, porque delinquem; que os advogados não sabem porque advogam; que os promotores não sabem porque acusam, e nem os juízes sabem porque julgam. E mais importante, nenhum deles poderia agir diversamente. Daí não fazer sentido a ideia de culpabilidade (mas não só ela), visto que não seria razoável exigir-se do agente dito culpável um comportamento diverso, isto é, conforme o direito. Estar-se-ia a exigir algo neurocientificamente inexigível.
Tampouco faria sentido a distinção entre condutas voluntárias e involuntárias, entre ações dolosas e não dolosas (imprudentes ou inconscientes), entre imputáveis e inimputáveis, uma vez que o agente careceria, inevitavelmente, de liberdade (consciente) de agir.
Embora talvez fosse mais prudente esperar o que de fato significará essa anunciada revolução neurocientífica, parece claro que a perspectiva neurocientífica (ou ao menos parte importante de neurocientistas) tende a reduzir o homem ao cérebro; a seguir, o cérebro ao cérebro inconsciente; e, por fim, o cérebro consciente a uma espécie de ventríloquo do cérebro inconsciente, tal é a superestimação deste último em detrimento do primeiro.8
De todo modo, ainda que se prove futuramente que o homem é um escravo de suas pulsões e desejos inconscientes, que ele é o que é, e não o que ele quer ou pretende ser, é improvável que isso implique a extinção do controle social e tampouco a abolição do controle penal, embora possa desencadear uma reformulação radical do direito penal que conhecemos hoje.9 Tanto é assim que mesmo os inimputáveis em razão de doença mental ou similar estão sujeitos à intervenção do direito penal (medidas de segurança).
Finalmente, o direito penal não se funda em dados (puramente) biológicos, mas em sistemas socialmente construídos de responsabilidade.10 E se o homem é ou não livre, isso depende do conceito de liberdade de que se parte, que não é, em princípio, um conceito biológico, mas político.11 Enfim, a investigação que procede da neurociência, embora necessária e importante, não é suficiente para a implosão do edifício jurídico-penal, que certamente resistirá à anunciada revolução neurocientífica, se bem que a partir de novos fundamentos.
1Disponível em El fantasma de la libertad (datos de la revolución neurocietífica), de Francisco J. Rubia. Barcelona: Crítica, 2009.
2De acordo com Gerhard Roth, “o homem é livre no sentido de que pode atuar em função de sua vontade consciente e inconsciente. Apesar disso, esta vontade está completamente determinada por fatores neurobiológicos, genéticos e do entorno, assim como pelas experiências psicológicas e sociais positivas e negativas, em particular as que são produzidas em etapas iniciais da vida, que dão lugar a mudanças estruturais e fisiológicas no cérebro. Isso significa que todas as influências psicológicas e sociais devem produzir mudanças estruturais e funcionais. Do contrário, não poderiam atuar sobre nosso sistema motor. Por último, isso supõe que não existe livre arbítrio em sentido firme, mas somente em sentido débil e compatibilista. E também significa que ninguém, nem os filósofos, nem os psicólogos, nem os neurobiólogos podem explicar como funciona o livre arbítrio em sentido forte. La relación entre razón e la emoción y su impacto sobre el concepto de libre albedrío, p. 114. In El cérebro: Avances recientes en neurociência. Madrid: Editorial Complutense, 2009.
3 John R. Searle. Liberdade e neurobiologia. S.Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 59.
4Experiencia própria y descripción neurobiológica ajena, p.30. Revista electrónica de ciencia penal y criminologia, 2010, revista 12. Criminet.ugr.es.
5Francisco Rubia, cit., p. 15.
6El fantasma, cit., p. 9.
7Gerhard Roth. La relación entre la razón y la emoción y su impcto sobre el concepto de libre albedrío, p.114.
8Segundo Roth, a consciência, entre outras coisas, sempre está relacionada com o processamento de informação nova, importante e complicada. Assim, sempre que enfrentamos decisões novas e importantes, devemos fazê-lo de forma consciente, mas em nossa memória inconsciente é guardada tudo que experimentamos em nossas vidas. La relación entre la razón y la emoción y su impcto sobre el concepto de libre albedrío, p.115. De acordo com Freud, o inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente. Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais. Ainda: as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência. A interpretação dos sonhos (segunda parte), capítulo VII (a psicologia dos processos oníricos). Em Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. XV. Rio de Janeiro: Imago, 1ª edição. Mais: “o inconsciente designa não apenas as ideias latentes em geral, mas especialmente ideias com certo caráter dinâmico, ideias que se mantêm à parte da consciência, apesar de sua intensidade e atividade” (…); “a inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica; todo ato psíquico começa com um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência, segundo encontra resistência ou não”. Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise. Em: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1ª edição.
9Para Michel Pauen, não há nenhuma revolução à vista, porque não existe uma refutação científica da liberdade e responsabilidade. A liberdade e a determinação não são incompatíveis, de modo que, ainda que tenhamos demonstrado que o nosso cérebro é um sistema determinista, ainda não demonstramos que não sejamos capazes de atuar livremente. Autocompreensión humana, neurociencia y libre albedrío. In El Cerebro: Avances recientes en neurociencia. Madrid: Editorial Complutense, 2009.
10No mesmo sentido, Hassemer: “…responsabilidade e imputação não descansam em conhecimentos da biologia humana, mas em razões sociais. Não sobrevivem por ignorância e irracionalidade, mas por conhecimento e experiência. Neurociências y culpabilidad em Derecho penal. Disponível em INDRET.COM. Barcelona: abril, 2011.
11Nesse exato sentido escreve Michel S. Gazzaniga: “a neurociência tem pouco que aportar à compreensão da responsabilidade. A responsabilidade é um constructo humano que existe só no mundo social, onde há mais de uma pessoa. É uma regra, construída socialmente, que existe só no contexto da interação humana. Nenhum píxel de uma imagem cerebral poderá manifestar culpabilidade ou inculpabilidade (…). Os neurocientistas não podem falar sobre a culpabilidade do cérebro, como tampouco pode culpar o relojoeiro o relógio. Não se nega a responsabilidade; só está ausente a descrição neurocientífica da conduta humana (…). A neurociência nunca encontrará o correlato cerebral da responsabilidade, porque é algo que atribuímos aos humanos – as pessoas – e não aos cérebros. El cérebro ético. Barcelona: Paidós, 2006, p. 110/111.