Da origem das religiões.- Como pode alguém perceber a própria opinião sobre as coisas com uma revelação? Este é o problema da origem das religiões: a cada vez havia um homem no qual esse fato foi possível. O pressuposto é que ele já acreditasse em revelações. Um dia ele tem, subitamente, o seu novo pensamento, e o regozijo de uma grande hipótese pessoal, que abrange o mundo e a existência, surge tão fortemente em sua consciência, que ele não ousa sentir-se criador de uma tal felicidade e atribuiu a seu Deus a causa dela, e também a causa da causa desse novo pensamento: como revelação desse Deus. Como poderia um homem ser autor de uma tal beatitude? – é o que reza a sua dúvida pessimista. E há outras alavancas agindo ocultamente: o indivíduo reforça uma opinião para si mesmo, por exemplo, a considerá-la uma revelação; ele apaga o hipotético, ele a subtrai à crítica, mesmo à dúvida, e torna-a sagrada. Assim nos rebaixamos a não mais do que órgão, é certo, mas nosso pensamento acaba por triunfar, como pensamento de Deus – esta sensação, de como isso permanecer enfim vitorioso, sobrepuja a sensação de rebaixamento. Também um outro sentimento atua nos bastidores: quando alguém eleva seu produto acima de si mesmo, aparentemente desconsiderando seu próprio valor, há nisso um júbilo de amor paterno e orgulho paterno, que tudo compensa e mais que compensa.
Nietzsche, in Aurora. São Paulo: Companhias das Letras, 2004, aforismo 62, p. 50.