José Osterno Campos de Araújo
Procurador Regional da República – 1ª Região
I – O Olho da Lei
À noite, vós todos que estais sobressaltados, tomados de temor e tremor1, sossegai, pois o olho da lei vigia.
É o que diz Friedrich Schiller, no poema “O Canto do Sino”: “De negro a Terra se cobre,/Mas a noite que desperta o mau, horrivelmente,/Não assusta os cidadãos,/ Pois o olho da lei vigia”2.
No molde da parábola bíblica – do joio e do trigo – o olho vigilante da lei distingue, dentre os homens, os maus dos bons, para conter os primeiros e os segundos tranquilizar.
“Se pensas que burlas as normas penais”, alerta Chico Buarque e, logo, continua, “Insuflas, agitas e gritas demais”, para em seguida concluir, “A lei logo vai te abraçar, infrator, com seus braços de estivador”3.
Com braços fortes e olho que tudo vê e nunca dorme, a lei – aqui, ali e em qualquer lugar4 – vigia.
Michael Stolleis5, escritor alemão, põe então os pingos nos ‘‘is’’: “O contexto reportado por Schiller é claro. Aqui, o ‘cidadão seguro’. Lá, o ‘criminoso perverso’ que, na calada da noite, acorda para praticar feitos ‘horríveis’. O Estado bem organizado, sua lei e a polícia civilizada do Estado de Direito, instituída para afastar perigos e garantir segurança, protegem o sono do cidadão, que pode confiar nas instituições e fechar seus olhos. A proteção estatal livra-o de perturbações; lá fora, o olho da lei vigia. O ‘submundo’ ativo na escuridão e o Estado vigilante se encontram, um em relação ao outro, em uma espécie de guerra interna. Se o cidadão for a vítima inocente de um crime, pode, atualmente, exigir indenização, pois o Estado não cumpriu seu dever de permanente vigilância”.
Vede, pois, cidadãos – por medo, privados do sono – aqui, “neste Vale de Lágrimas”6, além do Pai e da Mãe de Misericórdia, tendes também por vós o olho da lei.
II – A Cama de Procusto
Desta vez, contrariando a canção (“A dor da gente não sai no jornal”7), a dor pungente de passageira, em ônibus que trafegava pela Avenida Paulista, em bairro nobre de São Paulo, foi notícia em diversos jornais do país, principalmente nos jornais da capital bandeirante.
A manchete: ‘Homem, dentro de ônibus em movimento, após masturbar-se, ejacula no pescoço de passageira’’.
Um constrangimento? – Flagrante. Uma violência? – Grave. Um crime? – A olho nu, estupro!?
Da mitologia grega, a narrativa “A Cama de Procusto” vem assim resumida, por Nassim Nicholas Taleb, em página de seu livro de mesmo nome8: “Na mitologia grega, Procusto era o cruel senhor de uma pequena propriedade em Coridalos, na Ática, a caminho entre Atenas e Elêusis, onde os misteriosos ritos eram realizados. Procusto tinha uma noção peculiar de hospitalidade: raptava os viajantes, presenteava-os com um generoso jantar e depois convidava-os a passarem a noite numa cama assaz especial. Queria que a cama servisse na perfeição ao viajante. Aos que fossem demasiado altos, cortava-lhes as pernas com um machado aguçado; os que fossem demasiado baixos eram esticados (dizia-se que o seu nome era Damastes, ou Polipémon, mas tinha como alcunha Procusto, que significava <<o esticador>>). Procusto acabou por provar do seu próprio veneno, na mais pura justiça poética. Acontece que um dos viajantes foi o intrépido Teseu, que viria a matar o Minotauro mais tarde na sua carreira heroica. Após o habitual jantar, Teseu fez Procusto deitar-se na sua própria cama. Depois, para que ele lá coubesse na costumeira perfeição, decapitou-o. Teseu seguiu, assim, o método Herculano de pagar na mesma moeda”.
Na sequência do texto, Nassim Taleb faz duas observações9. Na primeira, informa: “Em versões mais sinistras (como a que consta da Bibliotheca, de Pseudo-Apolodoro), Procusto era dono de duas camas, uma curta e uma comprida, e fazia as suas vítimas mais baixas deitarem-se na cama comprida e as vítimas mais altas na curta”; na segunda, esclarece que sua intenção, ao se valer do recurso à metáfora da Cama de Procusto, foi também a de relevar a impropriedade do “acto de colocar algo no enquadramento errado”.
Tem-se – aqui – que ‘A Cama de Procusto‘ estaria para o tipo penal, assim como os viajantes deitados na fatídica cama estariam para os fatos da vida cotidiana, passíveis de enquadramento na moldura típica.
Há, no entanto, entre a cama procustiana e o tipo penal incriminador nítida diferença. Procusto, para adequar a pessoa ao tamanho da cama, cortava o que sobejasse ou esticava o que faltasse. No juízo de adequação típica, não há o que cortar ou esticar: ou o fato se adéqua, justa, exata e perfeitamente à previsão legal (como mão à luva, sem folgas ou apertos), ou, sob a ótica do tipo penal em questão, esse mesmo fato se apresenta como atípico ou, quem sabe, passível de enquadramento em tipo penal diverso.
Isto porque, no âmbito penal de incriminação, a atitude procustiana de cortar ou esticar é proibida pela Constituição (artigo 5º, inciso XXXIX) e pela Lei (artigo 1º do Código Penal). Com efeito, a legalidade penal estrita – que veda a analogia in malam partem – a proscreve.
Ainda a pergunta: ocorreu – com a ejaculação pública – estupro?
III – A Lente da Legalidade
É certo que – em constante vigília – o olho da lei vigia.
É certo que o mal – principalmente, o criminoso – deve ser contido. E, não o sendo a tempo, deve então ser punido.
É certo que a dor tortura e mais torturam as dores da alma.
É certo, por fim, que, para enxergar (e concluir se no caso concreto há, ou não, crime) o olho da lei penal precisa da lente da legalidade, sem a qual ele não enxerga direito (nem Direito) e, por isso, não vê crimes em fatos moral e eticamente reprováveis, por mais que o sejam.
Quem – dentre estudantes de direito, que fomos (somos e seremos, até o fim) – não ouviu do professor de Teoria do Crime, ainda nos primeiros anos da faculdade, o brocardo latino: ‘Nullum crimen nulla poena sine lege‘? Traduzido, ante nosso espanto: ‘Não há crime e não há pena, sem lei’.
E lei – esclarecia o professor – em sentido estrito, com rechaço de qualquer expediente interpretativo ou integrativo tendente a enquadrar, em sua moldura incriminadora, fatos assemelhados (mesmo que de máxima semelhança), mas não idênticos, e, assim, não adequados justa, exata e perfeitamente – sem sobras ou faltas – ao tipo penal analisado.
Retoma-se, pois, o fato que se tornou público e a pergunta que busca resposta: praticou, de fato e de direito, o insociável e nocivo agente, ao ejacular de surpresa na desditosa passageira, em pleno ônibus em movimento, o crime de estupro?
1 – A Narração do Fato
Três narrativas do fato:
a) a da jornalista Ruth de Aquino, em texto intitulado “Ejaculação pública no rosto constrange?” (revista ‘Época’, 04.09.2017): “O ajudante de serviços gerais Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, pegou um ônibus na cidade de São Paulo na terça-feira e, quando passava pela Avenida Paulista, sacou o órgão sexual, masturbou-se e ejaculou no pescoço de uma passageira, que estava sentada. Dá nojo imaginar a cena. Mas é real”. (…) “Os passageiros do ônibus, revoltados, impediram Diego de sair. Ele poderia ter sido linchado, se estivesse em lugares menos nobres e mais remotos no Brasil. Mas estava na Avenida Paulista”;
b) a de Luiza Nagib Eluf, Advogada Criminalista e ex-Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, em texto sob o título “O que é estupro?” (Jornal ‘O Estado de S. Paulo’, 20.09.2017): “Recentemente, dentro de um ônibus, um sujeito se aproximou de uma moça que estava sentada, masturbou-se e ejaculou no pescoço e no rosto da vítima. Ele foi preso em flagrante delito por crime de estupro, porém, na audiência de custódia, o promotor de Justiça pediu e o juiz acatou a desclassificação da conduta do suspeito, passando-a à contravenção de importunação ofensiva ao pudor, que tem previsão de pena de multa apenas, liberando-o em seguida”;
c) a do Juízo Penal, relatando, antes de decidir: “Trata-se de prisão em flagrante de DIEGO FERREIRA DE NOVAIS, em 29 de agosto de 2017, pela eventual prática do crime de estupro (art. 213, CP). Consta que o Indiciado estaria dentro de um ônibus e teria colocado seu pênis para fora da calça, masturbando-se e ejaculando em cima de uma passageira, que se surpreendeu e gritou, chorando. Pessoas tentaram agredir o indiciado, mas foram impedidas pela pronta ação do motorista e do cobrador”10.
2 – A Decisão Judicial
O Juízo processante, na referida audiência de custódia, após manifestação do Ministério Público, assim decidiu: “Na espécie, entendo que a conduta pela qual o Indiciado foi preso melhor se amolda à contravenção penal do art. 61, LCP do que ao crime de estupro (art. 213, CP). Explico. O crime de estupro tem como núcleo típico constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do Indiciado. O ato praticado pelo Indiciado é bastante grave, já que se masturbou e ejaculou em um ônibus cheio, em cima de uma passageira, que ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada. Ademais, pelo exame da folha de antecedentes do Indiciado, verifica-se que tem histórico desse tipo de comportamento, necessitando de tratamento psiquiátrico e psicológico para evitar a reiteração de condutas como esta, que violam gravemente a dignidade sexual das mulheres, mas que, penalmente, configuram apenas contravenção penal. Como essa contravenção é apenas punida somente com multa, impossível a homologação do flagrante. Ante o exposto, relaxo a prisão em flagrante. Expeça-se alvará de soltura”11.
3 – A Pertinente Indignação
Ruth de Aquino, no mesmo texto “Ejaculação pública no rosto constrange?”12, escreveu: “E se a vítima fosse a mulher do juiz, a mãe, a filha, a irmã, a neta do juiz? Ele acharia que não houve ‘violência’ quando Diego ejaculou no pescoço da passageira no ônibus?” (…) “O juiz … admitiu que … ‘a passageira ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada’ (mas não sofreu violência?)”. (…) “A sentença do juiz favorece a impunidade e estimula a reincidência, de Diego e de outros”.
Já Luiza Nagib Eluf, em seu texto “O que é estupro?”13, afirmou: “… a benevolência judicial causou indignação na população e o caso veio a público na forma de escândalo. Um agressor acusado de estupro se transformar em mero contraventor não parece razoável aos olhos da sociedade”. (…) “Da forma como hoje se encontra prevista na lei a conduta do estupro, não há dúvida alguma de que ejacular no rosto de alguém é estupro, pois constitui violência física e moral” (…) “Em nenhuma hipótese a situação vivenciada pela moça dentro do ônibus, que a deixou em estado de choque, pode ser enquadrada na contravenção de importunação ofensiva ao pudor, como ocorreu”.
Ainda Luiza Nagib Eluf, agora, em texto sob o título “Pena na dose certa” (revista Veja, 18.10.2017), justificou a ocorrência de estupro: “Ressalte-se que o Código Penal, em seu artigo 213, diz que é estupro ‘constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso‘. Portanto, masturbar-se dentro de um ônibus e ejacular no pescoço de uma passageira, como aconteceu recentemente, consiste em ato libidinoso e está enquadrado na figura do estupro, que tem pena de seis a dez anos de reclusão, pois o sujeito que ejacula sobre a vítima o faz mediante violência caracterizada pela surpresa. A jurisprudência admite que atingir a vítima de supetão é violência. A surpresa exclui a aceitação do ato e afasta o consentimento. Evidentemente, quem não pode consentir dissente”.
Por fim, em entrevista ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’, edição de 23.10.2017, respondendo à pergunta “O que achou do episódio do homem que ejaculou em cima de uma mulher dentro de um ônibus e o juiz o absolveu dizendo que não houve constrangimento?”, a rapper Karol Conka manifestou assim sua indignação: “Pelo amor de Deus! Constrangimento a gente está passando até agora com a fala desse juiz, né?”.
Sem razão – então – promotor e juiz?
4 – O Vácuo Legal ou Por que não foi estupro?
Analisa-se a decisão judicial sob dois prismas: o do cidadão comum e o do operador do direito.
Sob o prisma do cidadão comum, como marido, filho, pai, irmão e (futuro) avô – digo a Ruth – pena de morte, para repulsivo agressor, ainda seria insuficiente.
Agora, sob o prisma do operador do direito (penal) – a quem a lei diz: tu tens em mim os teus limites – tenho que concordar com a decisão.
Esclareço, no entanto: concordo com a conclusão, mas faço reparos à fundamentação da decisão.
Isto porque, ao invés de dizer que “não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do Indiciado”, melhor teria sido se, na fundamentação, o juiz houvesse dito: ocorreu, com o ato, constrangimento e violência. Mas constrangimento e violência como consequência da prática do ato, em que pese não ter havido constrangimento e violência como meio para sua prática. Dito de outro modo: houve, sim, constrangimento e violência, mas constrangimento e violência PELO ATO, e não PARA O ATO (circunstância exigida, para a configuração do estupro).
Considerar os ocorridos constrangimento e violência – pelo ato, e não para o ato – como suficientes a adequar o ato praticado ao crime de estupro seria agir com inconstitucional ofensa à legalidade penal.
Nem se poderia, ainda, invocar a analogia: os fatos não são por demais semelhantes? A legalidade estrita – fato adequado à norma, como mão à luva, sem folgas ou apertos – a impediria.
Quanto à argumentação e conclusão jurídicas apresentadas por Luiza Nagib Eluf – que entende ter ocorrido estupro, com a “ejaculação pública”- dois pilares parecem lhes servir de sustentáculo: o primeiro: o agir do “ejaculador” ocorreu, sim, mediante violência “caracterizada pela surpresa”; e o segundo: “A surpresa exclui a aceitação do ato e afasta o consentimento”.
Ao primeiro pilar (surpresa caracteriza a violência), pode-se contrapor: a equiparação da surpresa à violência deságua em induvidosos absurdos, como o de transformar um crime de furto – somente pela surpresa da subtração – em um crime de roubo. Com efeito, uma mulher que, em ônibus lotado, fosse surpreendida pela mão rápida de larápio que, sorrateiramente, lhe subtraísse da bolsa todo o salário do mês: Um constrangimento?14 Flagrante. Uma violência?15 Grave. Um crime de roubo, somente pela surpresa da subtração? Não.
Um segundo exemplo: o namorado que encontrasse, por acaso, a namorada sentada em um banco de ônibus, e, sendo dado a experiências sexuais extravagantes, a surpreendesse com uma ejaculação no pescoço, após masturbar-se, cometeria – pela surpresa do ato libidinoso – o crime de estupro? Suponha-se, ainda, que, cessado o ato, a namorada indignada gritasse ao namorado: “Tá doido? Brincadeira tem local e hora”. O dissenso, posterior à realização do ato, caracterizaria o estupro?16
Também o segundo pilar (surpresa exclui a aceitação do fato e afasta o consentimento) não se sustenta. Haveria estupro (?)17, na hipótese (cerebrina, porém possível) de o marido entrar no quarto do casal e, se deparando com a esposa dormindo, seminua, ficasse excitado e, após prévia masturbação, ejaculasse no pescoço da esposa; supondo-se, ainda, que o ato libidinoso despertasse a adormecida que, em que pese a heterodoxa surpresa, dissesse ao marido, lascivamente: “Danadinho, sempre aprontando”. No exemplo, tendo havido surpresa, não houve – necessariamente – a não aceitação do fato, nem o afastamento do consentimento18.
IV – Ponto Final
Por fim, a resposta à pergunta: ocorreu estupro na noticiada ejaculação pública? Estupro, não.
Corretas as conclusões do promotor e do juiz; mas também as indignações de Ruth, Luiza e Karol.
Todos têm razão, exceto a lei.
Cabe à sociedade exigir da lei – omissa – tipo penal que puna adequadamente fato tão repulsivo.
Por ora, legem (justa) non habemus.
1 Expressão tomada de empréstimo de Kierkegaard.
2 Apud Stolleis, Michael. O olho da lei. Tradução de Thiago S. Tannous. Belo Horizonte: Editora Doyen, 2014, p. 9.
3 Chico Buarque, Hino de Duran.
4 Expressão tomada de empréstimo de Lennon-McCartney.
5 Stolleis, Michael. Ob. Cit., p. 10.
6Expressão tomada de empréstimo à oração “Salve Rainha”.
7Chico Buarque, Notícia de Jornal.
8A Cama de Procusto. Tradução de Rita Almeida Simões. Publicações Dom Quixote: Alfragide – Portugal, 2010, p. 11.
9Idem, p. 12.
12Revista Época, 04.09.2117.
13Jornal O Estado de S. Paulo, 20.09.2017.
14Constrangimento – consequência do ato – no sentido de desrespeito, humilhação, desespero pela perda de toda a verba alimentar.
15Violência – consequência do ato – no sentido conotativo de abuso, violação de direito, ofensa à dignidade do trabalho; e não como coação física ou moral, para a realização do ato.
16O dissenso caracterizador do crime de estupro deve ser manifestado antes da prática do ato ou, quando muito, concomitante à sua prática. O dissenso posterior à realização do ato não evidencia o estupro.
17Neste texto, não se nega a possibilidade jurídica de o marido praticar o crime de estupro contra a esposa, mas desde que empregue (como meio) violência ou grave ameaça, para alcançar a conjunção carnal ou o ato libidinoso não consentidos.
18Parece absurdo se falar, sem fuga ao rigor lógico, em dar consentimento à prática de ato, após a realização desse ato. Melhor seria se falar, na hipótese, em referendo ou mesmo resignação.