José Osterno Campos de Araújo
Procurador Regional da República
Mestre em Ciências Criminais
Professor do UniCEUB
De pé, diante do juiz da instrução, Denis Grigóriev, “um pequeno mujique extraordinariamente magro”1, ouve, em silêncio, a acusação a ele feita: “No dia 7 de julho deste ano o vigia da estrada de ferro Ivan Semiônovitch Akínfov, ao passar de manhã pela linha do trem, na versta 141, encontrou você desatarraxando uma das porcas que prendem os trilhos aos dormentes. Aqui está ela, esta porca!… Por causa desta porca ele o prendeu”. (…) “Será que você não entende, cabeça-tonta, o que você pode causar desatarraxando porcas? Se o vigia não tivesse visto, o trem poderia descarrilar, pessoas poderiam morrer! Você mataria essas pessoas”.
2. É a imputação fática.
3. A imputação jurídica vem, em seguida: “O artigo 1.081 do Código Penal diz que se há qualquer danificação à estrada de ferro executada deliberadamente e que possa pôr em risco o transporte por essa via, e se o culpado sabia que as consequências disso seriam desastrosas… Está entendendo? Se ele sabia! E você não poderia não saber a que levaria desatarraxar a porca… O culpado será sentenciado ao exílio e a trabalhos forçados”.
4. Proferida a acusação, passa-se ao interrogatório do réu, com as peguntas de praxe: 1ª pergunta – “Foi assim mesmo” que aconteceu? “Como explicou Akínfov?”; 2ª pergunta – “Para que você desatarraxou a porca?”; 3ª pergunta – “Quer dizer que você desatarraxou essa porca para fazer uma chumbada com ela?”; e 4ª pergunta – “Quando fizeram busca na sua casa, encontraram mais uma porca… Em que lugar e quando você desatarraxou essa porca?”.
5. Às perguntas, Denis Grigóriev respondeu: 1ª resposta – “Claro que foi”; 2ª resposta – Para fazer chumbada com ela. “O povo… Os mujiques de Klímov”, todos fazem; 3ª resposta – “Vossa Excelência, dá pra pescar sem chumbada? (…) Que serventia tem se a isca viva fica boiando na superfície? A perca, o lúcio e a donzela ficam todos no fundo… (…) Lá onde eu moro os patrões pescam assim. E nem o moleque mais pequenininho vai pescar sem chumbada. É claro que quem não entende nada do assunto vai pescar sem chumbada. Para o tolo não se escreve lei…”2; e 4ª resposta – “Eu não desatarraxei ela, foi o Ignachka, filho do Semion Zarolho, que me deu”.
6. Dois conceitos jurídicos, aqui, se impõem: o de ‘crime de perigo‘ e o de ‘potencial consciência da ilicitude‘3.
7. No pertinente, colhe-se na doutrina: a) “”Crime de perigo‘ é aquele que se consuma com a simples criação do perigo para o bem jurídico protegido, sem produzir um dano efetivo” (Bitencourt)4; e b) “Potencial consciência da ilicitude” é, como o próprio nome diz, a possibilidade que tem o agente de, nas circunstâncias em que se encontra, saber que o comportamento realizado é contrário ao direito, ou seja, é a possibilidade de, no caso concreto, o agente possuir “a capacidade para se esforçar e se informar com o objetivo de conhecer a norma”.(Olivé, Paz, Oliveira e Brito)5.
8. Inequívoco, pois, haver a Justiça Pública imputado a Denis Grigóriev um crime de perigo (artigo 1.081 do Código Penal), consistente em desatarraxar porcas da linha do trem, criando perigo de descarrilamento.
9. A imputação procede, quanto à tipicidade da conduta do mujique de Klímov, seja em seu aspecto objetivo, por haver, é certo, retirado a porca do trilho, criando o aventado perigo, seja em seu aspecto subjetivo, já que quis realizar a retirada da porca (vontade – elemento volitivo do dolo) e também sabia o que, de fato, fazia (consciência – elemento intelectivo do dolo).
10. Não militando, em prol de Denis Grigóriev, causa excludente da ilicitude, resta, por fim, a análise do terceiro elemento do conceito analítico de crime6, a saber, a culpabilidade.
11. Presentes a imputabilidade7 e a exigibilidade de conduta diversa8, é hora de se perguntar se o mujique de Klímov, ao agir, tinha ou poderia ter condições de saber que sua conduta era contrária ao direito.
12. A prova do processo ou, melhor, a narrativa de Tchékhov, é conducente à resposta negativa, ou seja, não tinha Denis Grigóriev, na situação em que se encontrava, condições de atingir o conhecimento do injusto.
13. Com efeito: a) às folhas 128 do processo-conto, Denis afirmou que com porcas: “A gente faz chumbada”, e que, ao dizer gente, refere-se “Ué”, ao povo, “os mujiques de Klímov, quero dizer”; b) às folhas 129, acrescentou: “Lá onde eu moro os patrões também pescam assim. E nem o moleque mais pequenininho vai pescar sem chumbada”; c) às mesmas folhas 129, disse, quando instado a responder por que não procurara outro meio de conseguir porcas: “Ninguém acha um pedaço de chumbo na estrada, é preciso comprar, e prego não serve. Não existe nada melhor do que porca…É pesada e tem furo”; d) às folhas 129, ainda, quando alertado do perigo de sua conduta, assustado, retrucou: “Deus me livre, Excelência! Para que matar? Por acaso somos pagãos ou monstros? Graças a Deus, meu bom senhor, em toda nossa vida não só nunca matamos ninguém, como nem nos passou pela cabeça uma ideia desse tipo… Que a rainha do céu nos salve e proteja! O que o senhor está dizendo, senhor!”; e) em seguida, às folhas 130, declarou: “Já faz um tempão que na nossa aldeia a gente tira as porcas e Deus nos protegeu, e agora vem o senhor com desastres, pessoas mortas… Se eu tirasse um trilho ou colocasse um tronco atravessado no caminho dele, aí sim, era possível descarrilar o trem. Mas, só isso? Uma porca?”; f) continuando, às mesmas folhas 130, respondeu: “A gente não tira todas” (as porcas)… “Deixamos algumas… Usamos a cabeça… A gente entende…”, como a sugerir cautela utilizada pelos mujiques, para evitar acidentes; e g) por fim, às folhas 131, Denis Grigóriev arrematou: “Somos gente ignorante… Por acaso entendemos alguma coisa?”.
14. Ao final da instrução (e do conto), Denis Grigóriev é preso, quando, atônito, balbucia: “Juízes! Morreu o finado general, nosso patrão, que Deus o tenha, senão ele ia mostrar aos senhores juízes… É preciso julgar com sabedoria, e não assim, de qualquer jeito… Podem até açoitar, mas com um motivo, com justiça…”.
15. Em verdade, fez-se justiça a Denis Grigóriev? A justiça que, ao ser sentenciado, ele invocou?
16. Os costumes da região, em que todos (inclusive os patrões, de quem se poderia cobrar maior conhecimento das coisas do mundo) faziam aquilo – desatarraxar porcas, para fazer chumbada -; a condição pessoal de Denis, simples e de pouca cultura e informação; A inexistência de anteriores prisões, ou mesmos processos, por condutas idênticas à de Denis, praticadas na região; tudo isto embasa a conclusão de que Denis Grigóriev, ao desatarraxar a malfadada porca da linha do trem, não possuía a condição de saber que seu agir era contrário ao direito, ou seja, não possuía a consciência da ilicitude de seu ato.
17. A falta da potencial consciência da ilicitude afasta a culpabilidade. Sem culpabilidade, não há crime9.
18. Injusta foi a condenação de Denis Grigóriev – o mujique magro, “de camisa colorida e calças remendadas” – ocorrida, em 24 de julho de 1885, no conto “Criminoso Intencional”, de Anton Pavlovitch Tchékhov.
1 Tchékhov, Anton Pavlovitch. Um negócio fracassado e outros contos de humor. Tradução do russo e prefácio de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 128. Os demais trechos do conto transcritos neste texto foram colhidos na mesma edição.
2A lei da região era: Deve-se usar chumbada para pescar.
3Um dos elementos componentes da culpabilidade, sendo os outros dois: a imputabilidade e a exigibilidade de conduta diversa do crime.
4Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume I – parte geral. 14. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 224.
5Olivé, Juan Carlos Ferré et al. Direito penal brasileiro – parte geral: princípios fundamentais e sistema. Apresentação e prólogo Claus Roxin. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 485.
6Para a maioria da doutrina, nacional e estrangeira, que defende o conceito tripartite de crime: crime é fato típico, ilícito e culpável.
7Capacidade de culpabilidade.
8Livre opção pela seara criminosa.
9Para os defensores da teoria tripartite do conceito analítico de crime. Para os defensores da teoria bipartite, a falta da culpabilidade não exclui o crime, mas tão somente afasta a pena.