Notas sobre o artigo 9° da Lei de Abuso de Autoridade

24 de maio de 2021

I)Decretação arbitrária de medida privativa da liberdade

Art. 9º  Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.

1)Introdução

Houve veto do Presidente da República a esse artigo, derrubado pelo Congresso Nacional, que alegava violação ao princípio da taxatividade (legalidade), em virtude de o tipo penal ser excessivamente aberto. O veto da Presidência da República assinalou o seguinte:

A propositura legislativa, ao dispor que se constitui crime “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, gera insegurança jurídica por se tratar de tipo penal aberto e que comportam interpretação, o que poderia comprometer a independência do magistrado ao proferir a decisão pelo receio de criminalização da sua conduta.

Temos que o tipo nada tem de inconstitucional. Com efeito, mesmo os tipos penais mais fechados, precisos e taxativos (v.g., homicídio, furto etc.) são mais ou abertos, inevitavelmente valorativos/normativos, razão pela qual são diversamente interpretáveis. Além disso, o tipo contém o essencial à sua interpretação/aplicação conforme o princípio da legalidade/taxatividade penal. Aliás, trata-se de um crime de difícil ocorrência, visto que o art. 1°, §1º, da Lei, exige, além do dolo, a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

Mais: como é óbvio, a lei não pune a atividade interpretativa, nem poderia fazê-lo, pois a interpretação não é um modo de constatar um direito preexistente, mas a própria realização do direito – não existem fenômenos jurídicos, mas uma interpretação jurídica dos fenômenos[1] -, sendo inerente à atividade judicial. O que a lei pune é unicamente a interpretação caprichosa, arbitrária, manifestamente contrária ao ordenamento jurídico e com fins espúrios. E dolosa. Daí dizer o art. 1°, §2º:  A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

Foi expressamente revogado (art. 44) o art. 350 do CP (exercício arbitrário ou abuso de poder), cujo caput definia como crime “Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”. Como se vê, o tipo revogado era mais amplo e aberto do que o atual.

2)Elementos do tipo

2.1.)Introdução

O crime previsto no caput do artigo consiste em decretar: a)medida de privação da liberdade; b)em manifesta desconformidade com as hipóteses legais.

Decretar é determinar, ordenar, mandar, proferir decisão ou sentença. Medida de privação da liberdade é qualquer prisão ou medida de segurança (internação) provisória ou definitiva, decretada por autoridade civil ou militar. Em manifesta desconformidade com as hipóteses legais é toda privação arbitrária da liberdade, isto é, sem amparo fático ou legal, doutrinário ou jurisprudencial.

Assim, por exemplo, uma prisão temporária decretada de ofício por crime de ameaça, sem representação do ofendido ou de seu representante legal. Haveria aqui uma tríplice e evidente ilegalidade: a)a prisão temporária não pode ser decretada sem representação da autoridade policial ou requerimento do MP; b)não cabe prisão temporária por crime de ameaça; c)o art. 147, parágrafo único, do CP, exige representação.

Idem, se o juiz decretar a prisão civil de depositário infiel, vedada pela Súmula Vinculante n° 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. Atualmente a única prisão civil admitida é a do devedor de pensão alimentícia, na forma do art. 528, §3°, do Código de Processo Civil[2].

2.2)Medidas privativas da liberdade: prisões, medidas de segurança etc.

Somente medida privativa da liberdade pode configurar o delito, isto é, prisão provisória ou definitiva, prisão militar ou civil, em matéria criminal ou não. Além das prisões em flagrante delito, temporária, preventiva e definitiva (prisão-pena), também a medida de segurança privativa da liberdade, isto é, internação em hospital de custódia e tratamento imposta ao inimputável ou semi-imputável (CP, arts. 26 e 96, I), deve ser considerada como tal.

De acordo com o art. 283 do CPP, ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.

A prisão em flagrante é aquela realizada durante a execução do crime ou logo a após (CPP, art. 302). Já a prisão preventiva (CPP, arts. 311 e 312) pode ser decretada, no curso da investigação ou do processo, para garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, nos casos que a lei a admite (crimes dolosos graves etc.). Trata-se de uma prisão excepcional, ultima ratio do sistema cautelar vigente, que exige: a)prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria (fumus commissi delicti e periculum libertatis); b)cautelaridade (garantia da ordem pública etc.); c)impossibilidade de substituição por medida cautelar diversa (CPP, art. 319).

A prisão temporária pode ser decretada na forma da Lei n° 7.960/89 quando imprescindível para as investigações e desde que haja fundadas razões de autoria ou participação nos crimes que a lei menciona expressamente (crimes hediondos etc.).

A prisão temporária será decretada pelo juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. Nos crimes hediondos e equiparados, o prazo máximo é de 30 dias, podendo ser prorrogado por mais 30 dias em decisão fundamentada (Lei 8.072/90, art. 2°, §4°).

A prisão domiciliar, que consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial (CPP, arts. 317 e 318), não é uma modalidade autônoma de prisão, mas uma forma especial de cumprimento da prisão temporária ou preventiva.

Com exceção da prisão em flagrante delito (CPP, art. 301), que pode ser feita por qualquer pessoa, todas as demais modalidades de prisão só podem ser decretadas por autoridade judiciária e desde que haja representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público (CPP, art. 3°-A e 282, §2°). A prisão temporária e preventiva ex officio é vedada pelo ordenamento jurídico, em virtude do princípio acusatório, que separa rigidamente as funções de investigar/acusar e julgar.

De acordo com o princípio acusatório, o juiz não age de ofício (ne procedat iudex ex officio), excetuados os casos previstos em lei ou compatíveis com o caráter garantista/protetivo do direito (concessão de habeas corpus de ofício, revogação de prisões ilegais etc.).

Mais recentemente, o pacote anticrime previu a prisão preventiva obrigatória, isto é, sem cautelaridade (CPP, art. 492) para os crimes dolosos contra a vida, de competência do tribunal do júri, conforme a gravidade da pena aplicada. A reforma ressuscitou a velha e má prisão preventiva obrigatória prevista na redação original do Código de 1941.

Com efeito, ao ser proferida sentença condenatória pelo júri, o juiz-presidente determinará (art. 492, I, e), no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos.

Nos demais casos (condenação inferior a 15 anos), a prisão é facultativa, isto é, requer cautelaridade.

A lei prevê ainda hipóteses em que o presidente poderá deixar de autorizar a execução provisória das penas (§3°). Afirma também que a apelação interposta contra decisão condenatória do tribunal do júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo (§4°). Apesar disso, admite exceções (§5°), conferindo efeito suspensivo à apelação.

Essa nova modalidade de prisão preventiva está em manifesta contradição com o novo art. 313, §2º, do CPP, que diz: Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena. E nos parece inconstitucional, por violar o princípio da presunção de inocência, na forma como previsto na Constituição (CF, art. 5°, LVII).

Embora a lei não tenha fixado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, tal como ocorre com a prisão temporária, impôs o dever de reanálise de seus fundamentos a cada 90 dias (CPP, art. 316, parágrafo único). A rigor, portanto, a prisão preventiva vale apenas por esse prazo. Com efeito, se, decorrido o prazo legal, não houver pronunciamento judicial algum, a prisão tornar-se-á ilegal, devendo ser relaxada. Esse reexame é obrigatório e independe de provocação das partes.

Quando o juiz ou tribunal entender que a prisão preventiva deve ser mantida, proferirá decisão, motivando a manutenção da prisão. Trata-se de uma decisão que reaprecia a anterior, acolhendo ou rejeitando seus fundamentos, acrescentando novos argumentos quando houver.

Evidentemente, não valerá como tal a simples ratificação da decisão ou do acórdão já proferido, sem mais. Ou uma mera decisão afirmando que persistem os fundamentos da prisão preventiva porque nada de novo lhe sobreveio, como é comum ocorrer. É que a lei exige, a cada noventa dias, uma nova decisão, fundamentada sempre, não uma simples formalidade ou mera reiteração dos seus termos. Se assim fosse, a inovação seria de todo inútil.

Como é óbvio, nada impede que o juiz faça esse reexame antes do prazo de 90 dias, podendo, inclusive, revogar a preventiva a qualquer tempo.

O art. 315, §2°, do CPP, repete ipsis litteris o art. 489, parágrafo único, do CPC, relativamente aos critérios legais para a definição de decisão fundamentada/desfundamentada.

O art. 315 do CPP exige que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre fundamentada.

Não são, porém, consideradas como medidas privativas da liberdade as meramente restritivas de direitos ou da liberdade, a exemplo das penas restritivas de direito (CP, art. 43), e das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319), como a monitoração eletrônica, a proibição de frequentar determinados lugares, a prestação pecuniária etc. Assim, ainda quando decretadas arbitrariamente, não se configurará o crime de abuso de autoridade de que estamos tratando. Haverá, pois, abuso de autoridade, mas não o crime de abuso de autoridade. O fato é atípico, podendo ensejar, no máximo, responsabilidade civil ou administrativa.

Se não for assim, haverá violação ao princípio da legalidade, admitindo-se analogia in malam partem.

A lei criminaliza a decretação e a manutenção arbitrárias de prisões, não a sua revogação, relaxamento ou substituição por medida cautelar diversas, ainda que a soltura seja manifestamente ilegal. Nesse caso, pode haver outro delito (v.g., prevaricação etc.).

Para a configuração do delito, é irrelevante se houve requerimento do Ministério Público, pedido do querelante ou representação da autoridade policial pela decretação da prisão ou similar, que, quando arbitrária, pode ser imposta com ou sem requerimento.

O Código Penal (art. 96) prevê duas espécies de medidas de segurança para os inimputáveis e semi-imputáveis que tenham praticado crime: a)internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado;  b)sujeição a tratamento ambulatorial.

Mas a imposição arbitrária de medida de segurança só caracterizará o delito quando for aplicada a internação, medida de privação da liberdade que é. No caso de aplicação manifestamente ilegal de tratamento ambulatorial, o fato será atípico, já que é uma medida meramente restritiva, não privativa, da liberdade.

A prisão-pena (LEP, art. 105) requer o trânsito em julgado da sentença, devendo o juiz ordenar a expedição de guia de recolhimento para a execução.

Por fim, a única prisão civil atualmente admitida é a do devedor de pensão alimentícia, na forma do art. 528, §3°, do Código de Processo Civil[3].

 

2.3)Manifesta desconformidade com as hipóteses legais

Como é óbvio, as prisões decretadas ou mantidas na forma da lei não legítimas. E as decretadas de forma ilegal devem ser relaxadas ou revogadas, com ou sem a imposição de medidas cautelares diversas (monitoramento eletrônico etc.).

Para a configuração do crime de abuso de autoridade, não basta que se trate medida privativa da liberdade decretada ou mantida ilegalmente. A ilegalidade é uma condição necessária, mas não suficiente, para a caracterização do delito.

Exige-se mais: que seja uma prisão decretada em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, ou seja, há de tratar-se de medida privativa claramente arbitrária, imposta ou mantida dolosamente, com fins espúrios. É uma forma especial de prevaricação.

Justamente por isso, se a prisão não é claramente ilegal, se é decretada em condições discutíveis seja na doutrina, seja na jurisprudência, não há ilegalidade manifesta, e, portanto, não há o crime de que estamos tratando. Assim, por exemplo, se for imposta com base em doutrina ou precedente isolado. Já vimos que simples divergência de interpretação não é passível de criminalização.

Assim, por exemplo, uma prisão temporária decretada de ofício por crime de ameaça, sem representação do ofendido ou de seu representante legal. Haveria aqui uma tríplice e evidente ilegalidade: a)a prisão temporária não pode ser decretada sem representação da autoridade policial ou requerimento do MP; b)não cabe prisão temporária por crime de ameaça; c)o art. 147, parágrafo único, do CP, exige representação.

Idem, se o juiz decretar a prisão civil de depositário infiel, vedada pela Súmula Vinculante n° 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito”. Atualmente a única prisão civil admitida é a do devedor de prisão alimentícia, na forma do art. 528, §3°, do Código de Processo Civil[4].

Uma medida privativa da liberdade pode ser ilegal por mil razões, tais como: 1)não houve o alegado flagrante delito; 2)não foi realizada a audiência de custódia na forma e prazo legal; 3)o fato que ensejou a prisão não constitui crime; 4)não há prova mínima do delito; 5)o fato foi cometido em legítima defesa, estado de necessidade etc.; 5)a prisão temporária ou preventiva foi decretada de ofício, sem requerimento do MP ou representação da autoridade policial; 6)a prisão preventiva não foi revista no prazo legal máximo de 90 dias; 7)os delitos que ensejaram a prisão já estão prescritos; 8)a decisão carece de fundamentação idônea, na forma do art. 315, §2°, do CPP; 9)o tipo de infração penal não autoriza a prisão preventiva ou temporária (v.g., contravenções); 10)a prisão preventiva é perfeitamente substituível por medida cautelar diversa; 11) a prova colhida é reconhecidamente ilícita (v.g., obtida mediante tortura).

3)Crime especial?

Há quem considere que só autoridades judiciárias podem praticar o delito, já que são as únicas que dispõem de competência para decretar e deixar de relaxar prisões, bem como substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou deixar de conceder liberdade provisória ou não deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente ilegal.

O tipo penal se destinaria, portanto, a punir exclusivamente magistrados (juízes, desembargadores e ministros) sempre que, sabendo que a prisão é ilegal, decretam-na ou a mantêm, apesar de se tratar de hipótese claramente arbitrária.

Tratar-se-ia, pois, de crime próprio ou especial. No entanto, a afirmação é correta apenas em relação ao delito previsto no parágrafo único do art. 9°. Com efeito, com relação ao caput do artigo, o crime pode ser também praticado por não juízes, a exemplo de delegado de polícia, membro do Ministério Público etc., que, embora não disponham de atribuição legal para decretar prisões, e justamente por isso a prisão será manifestamente ilegal, podem prender e mandar prender arbitrariamente.

Mais: como qualquer do povo pode prender em flagrante delito (CPP, art. 301), também aqui é possível ocorrer prisões ilegais por autoridades ou pessoas que não disponham de poderes jurisdicionais.

O crime é comum, portanto. Afinal, qualquer autoridade judiciária militar ou civil, em matéria cível ou criminal (juízes, desembargadores etc.) pode figurar como sujeito ativo do delito, já que tanto as prisões penais quanto as cíveis podem privar alguém da liberdade (v.g., prisão civil por alimentos). Já vimos que também particulares ou autoridades sem poderes jurisdicionais podem incidir nas penas do caput do art. 9°.

Seja como for, parece que membros do Ministério Público, delegados de polícia e advogados podem figurar como partícipes do crime quando formulem pedido manifestamente ilegal pela decretação de prisão provisória ou definitiva, se e quando deferida. Aqui incidiria, por conseguinte, a regra do art. 29 do CP: Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

4)Coautoria e participação

Haverá coautoria dolosa quando a decisão manifestamente ilegal for tomada por órgão colegiado (turma ou câmara)? Parece que sim.

Não seria caso de autoria colateral, já que, apesar da autonomia das decisões, com fundamentação própria, haveria (em tese) um consórcio doloso entre os coautores. Para a configuração da coautoria, não é indispensável prévio ajuste entre os autores. Basta a adesão dolosa (nexo psicológico).

Como é óbvio, no caso de decisão colegiada, não há crime por parte de quem votou contrariamente à prisão, nem por parte de quem agiu sem dolo. Não existe coautoria ou participação culposa em crime doloso. Mais: o crime só é punível na forma dolosa.

Autores há que só admitem a coautoria em crime próprio se os coautores detiverem a condição especial exigida por lei, pois só aí haveria violação do dever funcional que a lei pune. O eventual domínio do fato seria irrelevante. Assim, quem não detiver a qualificação legal exigida pelo tipo só poderia responder como partícipe ou por crime diverso. Ver Roxin.

 

5)Dolo, erro de tipo e de proibição

Os delitos são punidos exclusivamente na forma dolosa; exige-se, pois, que o autor tenha conhecimento e vontade de decretar uma prisão que sabe arbitrária. Não haverá dolo, por exemplo, se a prisão não lhe foi comunicada ou se dela não teve conhecimento ou se tão logo se deu conta da ilegalidade revogou a medida privativa da liberdade.

O dolo compreende ainda o chamado fim especial de agir previsto no art. 1°, § 1º, da Lei, isto é, a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Além disso, a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade (art. 1°, §2°).

Também por isso, não há dolo, mas culpa, isto é, imprudência não punível penalmente, no caso de erro grosseiro, especialmente se foi prontamente corrigido.

Embora o sujeito ativo seja frequentemente autoridade judiciária com formação jurídica (juiz, desembargador etc.), é possível em tese ocorrer erro de proibição (inevitável ou evitável) sempre que o agente, em razão do desconhecimento da ilicitude do fato (v.g., juiz que jamais lidou com matéria penal ou não está a par dos detalhes de uma recente reforma penal), supuser que atua conforme o direito vigente. Ou se se vale de doutrina ou precedentes já superados, cuja superação desconhece.

Aqui o próprio art. 1°, §2º, da Lei, exclui a sua incidência: A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

6)Consumação

O crime se consumará assim que for decretada a prisão ilegal, ainda que a prisão não se efetive por qualquer motivo (concessão de habeas corpus, não cumprimento do mandado, fuga etc.). O crime é formal. A efetivação da prisão é mero exaurimento de crime já consumado.

Embora a tentativa não seja incompatível com os crimes formais, dificilmente tal ocorrerá aqui ou o fato será penalmente irrelevante. Também por isso, se houver desistência voluntária ou arrependimento eficaz, o fato será atípico.

 

7)Concurso aparente de normas e concurso de crimes

O crime de abuso de autoridade é especial relativamente ao crime de prevaricação e outros delitos (CP, art. 319), razão pela qual, havendo conflito aparente de normas, prevalecerá sobre estes: lex specialis derrogat legi generali.

Poderá haver, porém, concurso de crimes. Assim, por exemplo, se o abuso de autoridade resultar de corrupção da autoridade judiciária (CP, art. 317), incidirá também o crime de corrupção passiva. Nesse caso, não se aplicaria, contudo, a causa de aumento do § 1º (A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional), sob pena de bis in idem.

Haverá concurso material ou mesmo continuidade delitiva se o juiz vier a expedir novo mandado de prisão após a cassação da decisão pelo tribunal (CP, art. 69 e 71), reiterando, sem mais, o decreto cassado.

8)Ação penal

Como vimos, a ação penal é pública incondicionada, razão pela qual a investigação, o processo e os acordos penais são realizados oficialmente, com ou sem provocação dos interessados.

Considerando a pena cominada, é possível acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A) e suspensão condicional do processo (Lei n° 9.099/99, art. 89).

 

II)Manutenção arbitrária de medida privativa da liberdade

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.

Remissão aos comentários sobre o art. 9°, caput.

De acordo com o art. 5º, LXV, da CF, a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária. O termo relaxamento é normalmente utilizado para referir a prisão provisória ilegal (em flagrante, preventiva, temporária) decretada ou mantida ilegalmente.

Já o art. 310 do CPP prevê que, após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Além disso, o juiz também poderá, motivadamente: a)substituir a prisão em flagrante por medida cautelar diversa; b)deferir a liberdade sem restrição alguma; c)decretar a prisão temporária.

O juiz relaxará a prisão (CF, art. 5°, LXV[5]) sempre que for ilegal, ilegalidade que poderá resultar das mais diversas razões, tais como: não ter havido flagrante, vícios formais do auto de prisão em flagrante, o fato não constituir infração penal etc. Não obstante isso, é possível a decretação de medida cautelar diversa, a prisão (temporária ou preventiva), inclusive.

Quando a prisão em flagrante for legal e estiverem presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, não sendo o caso de substituição por medida cautelar diversa, o juiz poderá decretar a prisão preventiva ou temporária. Aqui, porém, é indispensável representação da autoridade policial ou requerimento do MP, sob pena de violação aos princípios da legalidade penal e acusatório (ne procedat iudex ex officio). Em suma, o juiz não pode decretá-las de ofício.

Mas, se o juiz entender desnecessária ou excessiva a decretação de prisão preventiva ou temporária, que são formas extraordinárias de privação da liberdade, decretáveis somente em ultima ratio, substituirá a prisão em flagrante por medida cautelar diversa (CP, art. 319). Poderá também conceder a liberdade provisória com fiança ou sem fiança.

Por fim, é possível a concessão da liberdade sem nenhum tipo de restrição, visto que, nos termos do art. 321 do CPP, ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código.

Assim, por exemplo, se o juiz considerar que o investigado agiu amparado pela legítima defesa ou por qualquer excludente de criminalidade (em sentido lato), razão pela qual deve ser posto em liberdade de forma incondicionada, apesar do disposto no art. 310, §1°, do CPP[6]. Aliás, esse deveria ser o tratamento legal, já que quem atua (possivelmente) amparado por excludente de ilicitude age conforme o direito, isto é, legitimamente.

O mesmo deverá ocorrer quando incidirem excludentes de tipicidade (v.g., erro de tipo inevitável etc.) ou de culpabilidade (v.g., erro de proibição invencível), visto que são requisitos do crime, sem os quais o delito não se perfaz. Cabe lembrar que crime é um fato típico, ilícito e culpável (e também punível, para alguns). Não seria diferente quando houvesse causas especiais de isenção de pena ou de extinção de punibilidade (prescrição etc.).

Em resumo, é uma impropriedade falar de concessão de liberdade provisória quando, segundo um juízo preliminar de verossimilhança e plausibilidade, o juiz entender que o fato não constitui crime, em virtude de ter sido praticado sob a proteção de uma causa de justificação ou excludente de outra natureza (CP, art. 23[7]). O mais correto seria relaxar a prisão, porque ilegal[8].

Quando a prisão for legal, mas desnecessária ou excessiva, o caso é de revogação, com ou sem substituição por medida cautelar diversa. Aqui incide o art. 5°, LXVI, da CF:  Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. O termo liberdade provisória é um impróprio para os dias atuais, já que provisória é a prisão, não a liberdade, que é a regra no sistema democrático. Apesar disso, tanto a Constituição quanto o Código de Processo Penal ainda o utilizam.

Ver crítica de Pacelli.

Haverá crime igualmente quando o juiz ou tribunal deixar de conceder habeas corpus ou medida liminar quando a prisão for manifestamente ilegal.

O habeas corpus é uma ação constitucional que se presta a proteger a liberdade de locomoção sempre que for, direta ou indiretamente, violada ou ameaçada de violação por ato ilegal ou abuso do poder público ou privado. É também uma garantia destinada a tutelar, de maneira eficaz e imediata, o direito de ir, vir e ficar[1].

writ of habeas corpus cumpre, pois, um papel constitucional relevantíssimo na proteção dos direitos fundamentais quando violados ou ameaçados de violação, conferindo-lhes uma tutela pronta, eficaz e sem formalismos, dificilmente comparável a outra garantia ou remédio constitucional, podendo, inclusive, ser concedido sem provocação do interessado (ex officio). Mais do que proteger a liberdade individual ou mesmo coletiva, o habeas corpus é um instrumento de defesa da Constituição, já que serve à realização do devido processo legal e dos princípios e regras que o integram. Além disso, o seu mui frequente uso na prática forense, mais do que um suposto abuso do direito de defesa, é o resultado da violação sistemática de direitos individuais.

De acordo com o art. 5°, LXVIII, da Constituição, conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. E são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania (CF, art. 5°, LXXVII).

Embora o juízo ou tribunal possa conceder liminar sem pedido da parte, temos que o delito só é possível quando houver pedido explícito do impetrante. Com efeito, faltando pedido expresso, não há omissão do juízo ou tribunal.

Além disso, se o próprio impetrante, que é o maior interessado, nada diz sobre liminar, dificilmente se poderá cogitar de dolo por parte do juiz ou tribunal que deixa de concedê-la.

Aqui o tipo é próprio ou especial, diversamente do caput: só autoridade judiciária (juízes, desembargadores, ministros) pode figurar como sujeito ativo do crime.

O crime é omissivo (omissivo próprio), pois criminaliza, não uma ação, mas uma omissão: deixar, arbitrariamente, de libertar preso provisório ou definitivo ou privado de sua liberdade em virtude de medida de segurança (internação).

O tipo consiste em deixar de, em prazo razoável: a)relaxar prisão manifestamente ilegal; b)substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível; c)deferir liminar ou ordem de habeas corpus quando manifestamente cabível.

Em todos os casos o que se pune é a decisão judicial deliberada e arbitrária de não colocar o preso ou interno em liberdade. Em suma, a autoridade judiciária, embora saiba que a privação da liberdade é claramente ilegal, recusa-se a soltar o custodiado.

Os incisos I e II tipificam a omissão da autoridade judiciária que, mesmo sabendo que a prisão é ilegal, mantem a custódia, deixando de relaxá-la ou de conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança, com ou sem concessão de medida cautelar diversa (CPP, art. 319).

Qualquer forma de prisão, civil ou militar, pode configurar o crime: prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva ou definitiva.

Embora o artigo fale de prisão, isto é, qualquer medida provisória ou definitiva de privação da liberdade, o termo deve também compreender a medida de segurança de internação em hospital e custódia, já que não deixa de ser uma forma de prisão com outro nome.

[1] Paulo Queiroz. Direito penal, parte geral. Salvador: 2020. Trata-se de uma paráfrase a partir de Nietzsche: Não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos (Além do bem e do mal, aforismo 108).

[2] Art. 528, §3º, do CPC: Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.

[3] Art. 528, §3º, do CPC: Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.

[4] Art. 528, §3º, do CPC: Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.

[5].       LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.

 

[6].       Art. 310

 

[7].       Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

[8].       No mesmo sentido, Gustavo Badaró: “Ou seja, a situação prevista no art. 310, parágrafo único, do CPP não deve levar à concessão da liberdade provisória, mas sim ao relaxamento do flagrante, posto que não haverá fumus commissi delicti. Se assim não for, além da ilogicidade do sistema, poderá haver grande iniquidade”. Curso de processo penal. São Paulo: RT, 2015, p. 1.046.

 

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