Elementos não valorativos do tipo?

6 de maio de 2013

A doutrina distingue elementos normativos e não normativos do tipo, isto é, valorativos e não valorativos. De acordo com Cézar Bitencourt, “os elementos objetivos ou descritivos são os identificáveis pela simples constatação sensorial, isto é, podem facilmente ser compreendidos somente com a percepção dos sentidos”1, a exemplo de alguém, pessoa, coisa etc.. Já os normativos são os que exigiriam uma apreciação valorativa (v.g., alheia, funcionário público). E os subjetivos diriam respeito ao conteúdo da vontade do agente.

Segundo José Cirilo de Vargas, “os elementos normativos requerem, para sua exata compreensão, uma atitude especial do intérprete, que pode ser de índole estimativa (perigo de vida), social (honestidade, probidade) ou jurídica (sem permissão legal, nos limites da lei etc.)”.2

Essa tradicional distinção é importante para a compreensão de vários institutos: dolo, erro de tipo, erro de proibição etc.

Mas é inconsistente.

Primeiro, porque tais elementos são conceitos e, conforme vimos, o conceito de um conceito é dado por um outro conceito, numa relação circular. Enfim, nenhum conceito existe ou é compreensível isoladamente, quer dizer, sem remissão expressa ou tácita a outros tantos (v.g., o conceito de tipicidade remete aos de tipo, conduta, ação, omissão etc.).

Segundo, porque o sentido e limites de um conceito não são dados pelo próprio conceito, mas por nós, ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibilidades, razão pela qual o seu conteúdo concreto depende do sujeito que o compreende. Logo, compreendê-los é valorá-los, inevitavelmente.

Consequentemente, se todos os conceitos são valorativos, os chamados elementos objetivos e descritivos também o são. Afinal, mesmo conceitos como homem, mulher e alguém são valorativos, embora mais facilmente determináveis (em tese) do que outros, como droga, falsamente etc.

Por exemplo: é consenso entre os autores que o pronome indefinido “alguém” constitui elemento descritivo ou objetivo e não normativo. Precisamente por isso, o tipo de homicídio (matar alguém) só pode ser praticado contra pessoa humana e não contra coisas ou animais, tampouco contra pessoas jurídicas. O mesmo consenso já não existe, porém, quanto ao alguém que aparece em diversos outros delitos, como nos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria). Com efeito, se, para uns, “alguém” aí é somente a pessoa física; para outros, compreende também a pessoa jurídica. Discute-se ainda se crianças e mortos seriam caluniáveis, difamáveis e injuriáveis.

Em suma: o suposto caráter objetivo, descritivo ou normativo dos elementos do tipo são apenas perspectivas do sujeito relativamente às coisas que conhece; e nesse sentido todos são subjetivos e, pois, valorativos (normativos).

Cumpre superar a distinção, portanto.

1 Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 349/350.

2 Os elementos negativos do tipo penal. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 61, pp. 287/304, jul./dez.2012.

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2 Comentários

  1. Os dogmas fechados (sic) clamam por uma interpretação real e coerente. A certeza da existência de um conceito puro e invalorável é, por si só, falsidade utilitária de juristas irracionais. Os conceitos puramente objetivos são mitos.

    “Não existem fatos, apenas interpretações.” Friedrich Nietzsche

    Excelente artigo e mais uma vez, como minha saudosa admiração.

    T.

  2. Como faz distinção de algo tão óbvios, quando tratamos de algo normativos e não normativos, uma situação que não precisamos de muita coerência para viabilizar!

    Forte abraço Dr Paulo

    LGOB

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