É relativamente comum juízes condenarem os réus, em concurso material, pelos crimes dos arts. 241-A e 241-B do ECA.
Temos, porém, que há aí bis in idem.
Com efeito, há absorção do crime menos grave (art. 241-B da Lei n° 8.069/90) pelo mais grave (art. 241-A da referida Lei). O caso é, pois, de unidade, não de pluralidade de delitos (concurso material).
É que a ação de adquirir, possuir ou armazenar tipificada no art. 241-B da Lei constitui crime meio relativamente ao crime fim do art. 241-A (oferecer, trocar, disponibilizar transmitir, distribuir publicar ou divulgar), seja porque é impossível compartilhar material pornográfico ilegal sem prévia aquisição, posse ou armazenamento, seja porque, uma vez realizada a ação de oferecimento, troca etc., incidirá esse tipo penal mais grave, a título consumado ou tentado.
Consequentemente, o autor que adquire material pornográfico e a seguir oferece-o, troca-o etc., responderá, normalmente, apenas pelo crime do art. 241-A, não pelo crime do art. 241-B em concurso (formal ou material), sob pena de bis in idem. O delito do art. 241-B somente incidirá, portanto, quando o agente se limitar a praticar uma (ou mais) das ações típicas aí previstas (adquirir, possuir etc.), sem compartilhá-lo, isto é, sem oferecer, trocar, transmitir etc.
Incide, portanto, o princípio da consunção, segundo o qual o crime mais amplo (e mais grave) compreende o menos amplo (menos grave), por já referi-lo na descrição típica, tal como ocorre entre o furto e o roubo, entre o sequestro e a extorsão mediante sequestro, entre a lesão corporal e o homicídio etc.
Basta conferir as redações dos tipos para se perceber que o art. 241-B é uma etapa necessária para a realização do crime do art. 241-A, razão pela qual não podem ser aplicados simultaneamente (ne bis in idem).
De fato, e como se vê abaixo, no crime do art. 241-B a lei pune o mero consumo de material pornográfico, à semelhança do art. 28 da Lei de Drogas; já o art. 241-A tipifica a ação de quem vai além do simples consumo desse material e o “trafica”, a título oneroso ou gratuito, tal como o art. 33 da Lei n° 11.343/2006.
Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008): Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008) (…)
Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008) Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008) (…) (grifo nosso)
Nesse sentido, são os seguintes precedentes dos TRFs da 3ª e 5ª Região:
(…) PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. DENÚNCIA QUE IMPUTA AS CONDUTAS DE ARMAZENAR E DISPONIBILIZAR VIA INTERNET FOTOGRAFIAS E VÍDEOS CONTENDO PORNOGRAFIA INFANTO-JUVENIL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. CONDENAÇÃO PELOS CRIMES TIPIFICADOS NOS ARTIGOS 241-A E 241-B DO ECA – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. AFASTADA A CONDENAÇÃO PELO DELITO DO ARTIGO 241-B. (…) 2. O Laudo Pericial, resultante do exame do material apreendido, constatou a existência de grande quantidade de material pedófilo no computador do acusado. Havendo imagens ativas armazenadas no HD, marca “Maxtor”, série 6RY3CPYN, resta caracterizada a materialidade do delito capitulado no artigo 241-B da Lei n.º 8.069/90, na modalidade de “armazenar”. 3. O Laudo Pericial, resultante do exame do HD, marca “Maxtor”, série 6RY3CPYN, registrou “que houve compartilhamento de fotografias contendo pornografia infantil através do software ‘Shareaza'”, restando caracterizada a materialidade do delito capitulado no artigo 241-A da Lei n.º 8.069/90, na modalidade de “disponibilizar”. 6. Não é possível, do ponto de vista lógico, que uma pessoa possa divulgar uma imagem sem antes armazená-la ou possuí-la, ao menos por alguns instantes. Ainda que na mídia digital seja possível posteriormente o apagamento das imagens divulgadas, por alguns instantes o agente teria que possuir essas imagens para poder divulgá-las. 7. No caso concreto, no mesmo disco rígido (HD) foram encontradas as provas tanto do armazenamento quanto da divulgação das imagens pornográficas infantis, não havendo dúvida de que o mesmo meio eletrônico utilizado para a divulgação das imagens foi também utilizado para o armazenamento das imagens. 8. Não se consegue imaginar a conduta do agente de praticar o crime do artigo 241-A do ECA sem antes praticar o crime do artigo 241-B da mesma lei. Aplicação do princípio da consunção, entendendo-se que o delito do artigo 241-B do ECA resta absorvido pelo crime do artigo 241-A. 9. Acrescenta-se a esse raciocínio que o §1º do 241-A do ECA tipifica a conduta do agente que armazena as imagens destinadas à divulgação. A intenção do legislador a foi de punir de maneira menos severa aquele que é o consumidor das imagens pornográficas, ou seja, aquele que recebe as imagens veiculadas por meio da internet, mas não as divulga, e apenar de forma um pouco mais grave aquele que divulga essas imagens. 10. Restou comprovado que o réu praticou as condutas tanto do armazenamento quanto da divulgação, sendo cabível a condenação apenas pela divulgação, e não pelo armazenamento. 11. Apelação da Defesa parcialmente provida. Apelação da Acusação prejudicada em parte, e na parte conhecida, improvida. (ACR 00013480920104036103, JUIZ CONVOCADO MÁRCIO MESQUITA, TRF3 – PRIMEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:01/10/2012 ..FONTE_REPUBLICACAO:.) (grifo nosso)
PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO DA DEFESA. CONDENAÇÃO, EM CONCURSO MATERIAL, PELA PRÁTICA DAS CONDUTAS TÍPICAS PREVISTAS NOS ARTS. 241-A E 241-B, AMBOS DA LEI Nº 8.069/90 (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ECA). DIVULGAÇÃO, VIA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES – INTERNET -, DE IMAGENS DE CONTEÚDO PEDÓFILO. PLEITO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO DE CRIMES, SENDO, IN CASU, O DELITO DO ART. 241-B (ARMAZENAMENTO DE IMAGENS) CONSIDERADO CRIME-MEIO PARA A PRÁTICA DO CRIME-FIM TIPIFICADO NO ART. 241-A (DIVULGAÇÃO DE IMAGENS). PROCEDÊNCIA. PRECEDENTES DESTA CORTE REGIONAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. POSTULAÇÃO DE BAIXA DOS AUTOS À ORIGEM PARA INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL DO SENTENCIADO. DENEGAÇÃO, ANTE A AUSÊNCIA DE APRESENTAÇÃO, DURANTE A INSTRUÇÃO, DE INDICADOR MÍNIMO, ATESTADO POR DOCUMENTAÇÃO MÉDICA, DE ENFERMIDADE PSÍQUICA. IMPÕE-SE DAR PARCIAL PROVIMENTO AO APELO, COM A RESPECTIVA REDUÇÃO DA SANÇÃO CORPORAL.
1. A questão nuclear do apelo interposto diz respeito à possibilidade de incidência do princípio da consunção, formulando a defesa, para tanto, teses que, reconheçamos, demonstram inegável plausibilidade jurídica quanto à necessidade de observância da ocorrência, in casu, de efetiva absorção da conduta tipificada no art. 241-B (crime-meio) pelo agir delituoso previsto no art. 241-A (crime-fim), ambos da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), para ao final ser reduzida a apenação aplicada, porquanto indevidamente balizada pelo concurso material de crimes (art. 69 do Código Penal).
2. Outro não é o entendimento do Ministério Público Federal, ao oferecer, na condição de custos legis, elaborado Parecer pela consunção de crimes.
3. Em sentido idêntico à pretensão recursal de absorção da conduta do art. 241-B do ECA, precedente estabelecido por esta 1ª Turma, em sede de julgamento (14.03.13) de apelação criminal (ACR 9462/PE), da relatoria do Des. Fed. Manoel Erhardt, além de aresto emanado do TRF/3ª REGIÃO (ACR 44922. 1ª TURMA. Rel. Des. Conv. Raquel Perrini. parc.prov. por maioria. julg. 31.07.2012).
4. Não se percebe, no caso concreto dos autos, a autonomia das condutas perpetradas pelo réu, como se fossem estanques, dissociadas uma da outra, mas, ao contrário, afiguram-se em tudo imbricadas e movidas pelo móvel único e principal de compartilhar/transmitir imagens com conteúdo pedófilo pela rede mundial de computadores – internet -, atitude, portanto, subsumível às elementares do tipo do art. 241-A da Lei nº 8.069/90, sendo bastante o tipo penal em evidência para promover a necessária e adequada responsabilização penal do agente infrator.
5. Em nenhum momento processual foi requerida, pela defesa do réu, a juntada – independentemente de qualquer procedimento médico determinado pelo juízo – de documento atestatório de eventual morbidade psíquica atribuível ao réu e, portanto, preexistente ou concomitante aos fatos delituosos apurados no feito criminal associado ao presente apelo. Nessa linha, inexiste documentação atempadamente colacionada aos autos acerca de eventual histórico de acometimento – e tratamento médico – das faculdades mentais do réu, descabendo, portanto, somente quando deflagrada – e finda – a persecução penal, sugerir, pura e simplesmente, estado psíquico malsão, com o objetivo de se furtar, de alguma forma, à responsabilização penal em sua medida comum e ordinária à imputação.
6. Remanesce, exclusivamente, a pena de 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão para o delito do art. 241-A da Lei nº 8.069/90, sem retoques na fundamentação utilizada pelo julgador monocrático para a fixação da pena-base, em patamar acima do mínimo legal previsto na norma, visto que acertadamente justificado o acréscimo.
7. Segue-se mudança no regime inicial de cumprimento de pena, doravante para o da modalidade aberto, nos termos do art. 33, parágrafo 2º, ‘c’, do CP. Mantida a vedação à substituição da pena corporal por restritivas de direitos, pelo não preenchimento dos requisitos do art. 44 do CP.
8. Apelação parcialmente provida.
(PROCESSO: 00005703220154058100, ACR13208/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL MANUEL MAIA (CONVOCADO), Primeira Turma, JULGAMENTO: 28/04/2016, PUBLICAÇÃO: DJE 02/05/2016 – Página 210)