Dez teses jurídico-penais

8 de julho de 2013

1)Não existem fenômenos criminosos, mas uma interpretação criminalizante dos fenômenos. Consequentemente, não existem fenômenos típicos, antijurídicos e culpáveis, mas uma interpretação tipificante, antijuridicizante e culpabilizante dos fenômenos.1 Matar, roubar ou estuprar pode ser conforme o direito, inclusive, porque o que seja matar, roubar e estuprar e as possíveis formas de legitimação dessas ações e de isenção de culpa não estão previamente dadas, visto serem socialmente construídas. O crime é um constructo.

2)Não existe distinção entre elementos normativos, descritivos e objetivos do tipo. Todos são normativos (valorativos). Porque o sentido dos textos legais não é dado pelos próprios textos, mas por nós, ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibilidades. Nós introduzimos nossos valores nas coisas por meio da interpretação2. Logo, todos os elementos do tipo são inevitavelmente valorativos, embora esse caráter valorativo nem sempre seja evidente. O pronome indefinido alguém é tão normativo quanto qualquer outro. Não é por acaso que, nos crimes contra honra, se discute, por exemplo, se o alguém aí previsto compreende crianças, mortos e pessoas jurídicas.

3)Todo tipo penal encerra uma proibição, direta ou indiretamente, expressa ou tacitamente (de não matar, de não furtar etc). Do contrário, os tipos não fariam sentido algum. Uma conduta típica é, portanto, uma ação ou omissão proibida jurídico-penalmente.

4)Como os tipos encerram proibições penais, a tipicidade é um juízo de valor sobre a proibição de um comportamento, sendo que essa complexa valoração compreende, além dos elementos explícitos do tipo (matar alguém etc.), a ausência de causas de justificação (legítima defesa etc). Um comportamento não pode ser típico (proibido penalmente) e conforme o direito (justificado) ao mesmo tempo.

5)A valoração que fazemos sobre a tipicidade de uma conduta encerra, em verdade, um juízo complexo de ponderação de interesses que envolve, entre outras coisas: a)uma valoração sobre se uma determinada conduta está ou não proibida pelo respectivo tipo penal; b)se se trata de uma ação significativa ou não; c)se o autor agiu ou não dolosamente; d)se a ação é objetivamente imputável, se houve criação de um risco proibido e realização desse risco no resultado etc. E tudo isso depende, em grande parte, da valoração da prova produzida nos autos da ação penal, tarefa das mais relevantes e difíceis.

6)Os elementos negativos do tipo (teoria dos elementos negativos do tipo) são, além das excludentes de ilicitude (legítima defesa etc.), toda e qualquer circunstância capaz de afastar a incidência da proibição típica.

7) Como o tipo compreende a matéria proibida, todo erro de tipo é um erro de proibição, pois errar sobre o tipo é errar sobre a proibição que o tipo encerra. Exemplo: quem tem droga ilícita supondo ser substância inócua erra, simultaneamente, sobre o tipo e sobre a proibição. Afinal, quem não tem a exata dimensão do fato, tampouco terá noção da proibição penal que recai sobre esse fato. Erro de tipo e erro de proibição são, em última análise, uma só e mesma coisa: variações de um erro de interpretação.

8)A recíproca é verdadeira: todo erro de proibição é um erro de tipo, pois quem erra sobre a proibição erra sobre o tipo, já que o tipo contém (conceitualmente) a matéria proibida. Errar sobre o tipo é, pois, errar sobre a proibição; e errar sobre a proibição é errar sobre o tipo.

9)Como o tipo contém toda matéria objeto da proibição, o dolo compreende, logicamente, o conhecimento da proibição. Logo, dolo é dolus malus. Assim, faltando ao agente a consciência da ilicitude, não há dolo.

10)Consequentemente, o conhecimento da ilicitude não é um problema de culpabilidade, mas de tipicidade.

1Paulo Queiroz. Curso de direito penal. Salvador: editorajuspodivm, 2013, 9a. edição.

2Nietzsche. Vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

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4 Comentários

  1. Teses suficientemente sedutoras, mas que, salvo engano, pressupõem a adoção da teoria dos elementos negativos do tipo, a qual não detém larga aceitação.

    Por enquanto, não me convenci do acerto das teses, embora plenamente convencido do brilhantismo com que você as maneja.

    Abraço,

    Osterno

  2. Prezado Doutor Paulo,

    Qual a sugestão para realizar o movimento da significância ao significado? Para se mover da potencialidade para a realidade? Por exemplo: sabemos que o dolo sempre foi atribuição, ou seja, é uma interpretação (dar um sentido). É o intérprete quem atribui o dolo. É o intérprete quem diz que determinada conduta é dolosa, mas como ele chega a tal compreensão? Como o intérprete pode realizar a interação entre os textos (definições de dolo, por exemplo) e a realidade (os fatos) sem que o sentido atribuído seja arbitrário, subjetivismo?

    Parece-me que o evento hermenêutico da verdade (Gadamer) poderia ser uma reflexão interessante para se chegar a respostas harmônicas. Enfim, a verdade simplesmente acontece (e, claro, não estou falando de verdade real, mas numa verdade intersubjetiva, constituída pelo discurso), como alguém que está montando um quebra-cabeça e o finaliza, mas o que garante ser essa compreensão adequada é a harmonia que há entre o todo e as partes. Se houver harmonia, o sentido não seria arbitrário, embora possa se revelar – a partir de novas reflexões, novos diálogos, novas pesquisas, enfim, novas fusões de horizontes –, incorreto.

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