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Crítica da vontade de verdade

         Verdade é um tipo de erro sem o qual uma espécie de seres vivos não poderia viver. O valor para a vida decide em última instância.1


O professor Lênio Luiz Streck acaba de publicar um interessantíssimo livro, cujo título é: “o que é isto? – decido conforme a minha consciência?”2

O texto pretende combater o “juiz solipsista”3, uma espécie de Juiz Robinson Crusoé, que decidiria, não segundo a Constituição, mas segundo a sua consciência (e vontade) apenas.

Escreve textualmente Lênio Streck: “Desse modo, quando falo aqui – e em tantos outros textos – de um sujeito solipsista, refiro-me a essa consciência encapsulada que não sai de si no momento de decidir. É contra esse tipo de pensamento que volto minhas armas. Penso que seja necessário realizar uma desconstrução (abbau) crítica de uma ideia que se mostra sedimentada (ou entulhada, no sentido da fenomenologia heideggeriana) no imaginário dos juristas e que tem se mostrado de maneira emblemática no vetusto jargão: ‘sentença vem de sentire…’(para citar apenas um entre tantos chavões, que, como já demonstrei, transformaram-se em enunciados performáticos).”

A primeira dúvida reside em saber se existiria de fato um tal juiz/sujeito. Afinal, de acordo com o autor, “…não é mais possível pensar que a realidade passa a ser uma construção de representações de um sujeito isolado (solipsista). O giro ontológico-linguístico já nos mostrou que somos, desde sempre, seres-no-mundo, o que implica dizer que, originariamente, já estamos ‘fora” de nós mesmos nos relacionando com as coisas e com o mundo. Esse mundo é um ambiente de significância; um espaço no interior do qual o sentido – definitivamente – não está à nossa disposição”.4

Se isto é correto, parece então que um juiz solipsista jamais existiu realmente, ainda que ele (o juiz) pensasse decidir isoladamente, com base exclusivamente em sua consciência. E mesmo um Robinson Crusoé, cuja consciência era o resultado de toda a tradição moral, religiosa, jurídica (etc.) que lhe fora ensinada antes do naufrágio que o vitimara, tinha na ilha a companhia de um Sexta-Feira. Tinha, pois, além de seus próprios limites, os limites de um semelhante e da ilha/natureza em que passou a habitar.

Enfim, nem mesmo para Robinson Crusoé é possível falar de “um grau zero de sentido”. E como assinala Gadamer, “não é a história que pertence a nós, mas nós que pertencemos à história. Muito mais do que nós compreendemos a nós mesmos na reflexão, já estamos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso, os pré-conceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser”.5

Justamente por isso, parece carecer de sentido a pergunta: “onde ficam a tradição, a coerência e integridade do direito? Cada decisão parte (ou estabelece) um ‘grau zero de sentido’?”.6

Aliás, é o próprio autor quem conclui que “é exatamente por isso que podemos dizer, sem medo de errar, que o sujeito solipsista foi destruído (embora sobreviva em grande parte do ambiente jusfilosófico). Afinal, como diz Gadamer, ‘quem pensa a linguagem já se movimenta para além da subjetividade.”7

E não seriam o espírito de transgressão e a tendência ao isolamento/solipsismo inerentes aos pensadores que se pretendem originais?

Mas não é só. Para Lênio Streck, que cita voto proferido por um certo ministro que afirma não importar o que os doutrinadores pensam, “já como preliminar é necessário lembrar – antes mesmo de iniciar nossas reflexões no sentido mais crítico – que o direito não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é”.8 Uma das conclusões a que chega é exatamente nesse sentido: “o direito não é aquilo que o judiciário diz que é. E tampouco é/será aquilo que, em segundo momento, a doutrina, compilando a jurisprudência, diz que ele é a partir do repertório de ementários ou enunciados com pretensões objetivadoras.”9

A pergunta que sempre fica é: se o que os tribunais (e juízes) dizem que é o direito, direito não é, o que seria isso então? O não-direito, o torto, o arbítrio? E o que seria o direito?

Segundo Lênio Streck, a decisão judicial não é um ato de vontade. O que seria, então? Um ato de verdade, entendida como a resposta constitucionalmente adequada ou similar?10 Mas a verdade, escreveu Nietzsche, “não é algo que existisse e que se houvesse de encontrar, de descobrir – mas algo que se há de criar e que dá o nome a um processo; mais ainda: uma vontade de dominação que não tem nenhum fim em si: estabelecer a verdade como um processus in infinitum, um determinar ativo, não um tornar-se consciente de algo que fosse em si firme e determinado. Trata-se de uma palavra para a ‘vontade de poder’”.11

Precisamente por isso é que Günter Abel diz que não é mais a interpretação que depende da verdade, mas justamente o contrário, que é a verdade que depende da interpretação, pois nos processos de interpretação não se trata, primariamente, de descobrir uma verdade preexistente e pronta, uma vez que não é possível pensar que haja um mundo pré-fabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à nossa disposição aguardando por sua representação e espelhamento em nossa consciência.12

E se existem apenas perspectivas sobre a verdade, não existe, por conseguinte, a verdade; consequentemente, não existe a resposta constitucionalmente adequada (ou correta etc.), mas apenas perspectivas sobre a resposta constitucionalmente adequada.13 A resposta constitucionalmente adequada/correta é uma ficção inútil.

E o que é (e quem diz qual é) essa resposta constitucionalmente adequada? E o que a torna a resposta adequada, relativamente às demais (não adequadas)?

É certo que Lênio Streck entende existir a resposta correta (não a única), isto é, “adequada à Constituição e não à consciência do intérprete”14, chegando a defender, inclusive, um direito fundamental a isso.15 Mas o que seria de fato a resposta constitucionalmente adequada senão aquela que o próprio intérprete (juiz, tribunal etc.) considera, segundo a sua perspectiva (consciência etc.), como tal?

Kelsen tinha, pois, razão quando assinalou:

 

Todos os métodos de interpretação até o presente elaboradas conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto. (…). Na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva.16

 

Parece-nos, pois, que podemos criticar um certo tipo de vontade, mas não a vontade mesma, que está na raiz de toda decisão (judicial ou não), inevitavelmente. E por mais que consideremos uma determinada decisão (interpretação) arbitrária, incorreta ou injusta, uma coisa é certa: os limites de uma interpretação são dados por uma outra interpretação.

Finalmente, a possibilidade de decisões absurdas ou teratológicas (contra legem) é, em princípio, necessária à democracia. Que diria, com efeito, a doutrina da época sobre a primeira decisão (solipsista?) que, no auge do regime, declarava a nulidade do contrato de compra e venda de escravos, que admitia a adoção por casais homossexuais, que recusava a distinção legal entre filhos legítimos e ilegítimos, que permitia a mudança de sexo etc.?

E mais: a questão fundamental não reside (mais) em saber se a sentença encerra ou não um ato de vontade, se há ou não uma resposta constitucionalmente adequada, mas na legalidade e legitimidade do controle dos atos do poder público, aí incluídas as decisões judiciais.

1 Nietzsche. Vontade de Poder. Rio: Contraponto, 2008, p. 264.

2 O que é isto – Decido conforme a minha consciência? Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre: 2010.

3 De acordo com o Dicionário Oxford de Filosofia (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.367), solipsismo é “a crença de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O solipsismo é a conseqüência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiências interiores e pessoais, e de não se conseguir encontrar uma ponte pela qual esses estados nos deem a conhecer alguma coisa que esteja além deles. O solipsismo do momento presente estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente. Russel conta-nos que conheceu uma mulher que se dizia solipsista e que estava espantada por não existirem mais pessoas como ela.”.

4 Idem, p. 57.

5Verdade e Método. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, 3ª edição.

6 Ibidem, p. 27.

7 Ibidem, p. 58.

8 Ibidem, p. 25.

9 Ibidem, p.107.

10Em Verdade e consenso (Rio: Lúmen Júris, 2007, p. 309), Lênio Streck diz que “…a resposta correta aqui trabalhada é a resposta hermeneuticamente correta, que, limitada àquilo que se entende por fenomenologia hermenêutica, poderá ser denominada de verdadeira, se por verdadeiro entendermos a possibilidade de nos apropriarmos de pré-juízos autênticos, e, dessa maneira, podermos distingui-los dos pré-juízos inautênticos…”. Tem ainda que “na medida em que o caso concreto é irrepetível, a resposta é, simplesmente, uma (correta ou não) para aquele caso. A única resposta acarretaria uma totalidade, em que aquilo que sempre fica de fora de nossa compreensão seria eliminado. O que sobra, o não-dito, o ainda não-compreendido, é o que pode gerar, na próxima resposta a um caso idêntico, uma resposta diferente da anterior. Portanto, não será a única resposta; será sim, ‘a’ resposta.” (idem, p. 317). E mais: “a única reposta correta é, pois, um paradoxo: trata-se de uma impossibilidade hermenêutica e, ao mesmo tempo, uma redundância, pois a única resposta acarretaria o seqüestro da diferença e do tempo (não esqueçamos que o tempo é a força do ser na hermenêutica). E é assim porque conteduística, exsurgindo do mundo prático.”(Ibidem, p. 317). Conclui que “em síntese, a afirmação de que sempre existirá uma resposta constitucionalmente adequada – que, em face de um caso concreto, será a resposta correta (nem a melhor nem a única) – decorre do fato de que uma regra somente se mantém se estiver em conformidade com a Constituição…” (idem, p. 364). Em o que é isto? Decido conforme a minha consciência? Lênio Streck volta a afirmar que a resposta que propõe não é nem a única nem a melhor, mas “simplesmente se trata ‘da resposta adequada à Constituição’, isto é, uma resposta que deve ser confirmada na própria Constituição, na Constituição mesma (no sentido hermenêutico do que significa a ‘Constituição mesma’…” (cit., p. 97). Idem, p. 84, nota de rodapé 96, Lênio Streck escreve: “de se ressaltar que, por certo, não estou afirmando que, diante de um caso concreto, dois juízes não possam chegar a respostas diferentes. Volto a ressaltar que não estou afirmando, com a tese da resposta correta (adequada constitucionalmente) que existam respostas prontas a priori, como a repristinar as velhas teorias sintáticas-semânticas do tempo posterior à revolução francesa. Ao contrário, é possível que dois juízes cheguem a respostas diferentes, e isso o semanticismo do positivismo normativista já havia defendido desde a primeira metade do século passado. Todavia, meu argumento vem para afirmar que, como a verdade é que possibilita o consenso e não contrário; no caso das respostas divergentes, ou um ou ambos os juízes estarão equivocados”.

11 Nietzsche. Vontade de Poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 288.

12Verdade e interpretação, in Nietzsche na Alemanha, org. Scarlett Merton, discurso editorial, S. Paulo, 2005, p. 179/199.

13 Nietzsche escreveu: “há muitos olhos. Também a esfinge tem olhos; consequentemente, há muitas verdades e, consequentemente, não há nenhuma verdade”. Vontade de poder, cit., p. 282.

14O que é isto? p. 101.

15O que é isto? p. 84.

16KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6ª Ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 394-395.

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