1)Introdução
A competência por prerrogativa de função (também conhecida como foro especial ou privilegiado) é prevista constitucional e legalmente para exercício de certos cargos e funções públicas, a pretexto de garantir a imparcialidade dos julgamentos e manter certa hierarquia funcional.
Normalmente o foro especial sacrifica o direito ao duplo grau de jurisdição, por falta de previsão de apelação que assegure ao réu a reapreciação de toda matéria de fato e de direito. No máximo, os acórdãos proferidos em ação penal originária (condenatórios ou absolutórios) comportam embargos infringentes ou de declaração e recurso extraordinário ou especial.
Com a recente orientação do STF (Ação Penal n° 937/RJ, de 2018, Relator Ministro Luís Roberto Barroso), que limitou, em relação a deputados federais e senadores, a sua competência aos delitos praticados durante o mandato e relacionados ao seu exercício, é provável que essa limitação se estenda a todas as autoridades atualmente detentoras de foro especial (juízes, promotores etc.), por força do princípio da simetria/isonomia.
Logo, se o delito cometido por autoridade com foro especial não tiver relação com o exercício atual do mandato ou cargo público, a investigação e o processo correrão perante o juízo de primeiro grau (federal ou estadual).
A prerrogativa, que nasce com a investidura no cargo ou função (diplomação), cessará com a perda do cargo ou da função (renúncia, aposentadoria, extinção do mandato etc.), devendo os autos ser remetidos ao juízo competente.
Ela prevalecerá também quando houver coautoria ou participação de pessoa sem prerrogativa de função, razão pela qual um e outro serão julgados perante o tribunal competente. Assim, por exemplo, se houver coautoria em peculato (CP, art. 312), o prefeito e o particular implicados no crime serão julgados pelo tribunal de justiça (Súmula 704 do STF1).
Cuida-se, porém, de reunião não obrigatória de processo, razão pela qual poderá ocorrer, a juízo da autoridade judiciária competente (tribunal de maior graduação, não o juiz de primeira instância), a separação dos processos (CPP, art. 802).
Considerado como critério absoluto de competência, o foro especial prevalece sobre os demais critérios de determinação da competência (lugar do crime etc.). Assim, juiz do Estado da Bahia que praticar crime doloso contra a vida noutro Estado da Federação será julgado pelo TJ/BA, não pelo tribunal de justiça em cujo território foi cometido o crime, nem pelo tribunal do júri. Entende-se, no caso do júri, que prevalece a justiça de maior graduação (CPP, art. 78, III).
Antes da nova orientação do STF (2018), que restringiu sua competência para os delitos cometidos durante o mandato parlamentar (senador e deputado federal) e relacionados ao seu exercício, a questão da prerrogativa de foro era assim resolvida: 1)crime cometido antes de o réu assumir o mandato ou cargo passaria a ser julgado pelo tribunal competente, sendo válidos os atos até então praticados perante o juiz competente; 2)crime praticado durante o mandato era de competência do respectivo tribunal, sendo inválidos os atos eventualmente praticados por juiz incompetente; 3)crime praticado depois de extinto o mandato ou após a perda do cargo era de competência da justiça comum (Súmula 451 do STF3), entendimento aplicável inclusive aos cargos vitalícios (juiz aposentado etc.). Mas havia precedente no sentido de que a renúncia ao mandato na véspera de julgamento não alterava a competência, por se tratar de manobra protelatória.
Com a nova orientação do STF, apenas no item 2 (crime praticado durante o mandato), e somente se tiver relação com exercício do mandato ou cargo, incidirá a competência por prerrogativa de função. Nos demais casos, o processo tramitará perante a justiça de primeiro grau.
2)Competência do tribunal do júri
Deputado federal ou senador que praticar delito doloso contra a vida no exercício da função e relacionado ao exercício funcional será julgado pelo STF, não pelo tribunal do júri. O mesmo vale para outras autoridades com foro especial, que serão julgados pelos tribunais perante os quais detêm prerrogativa de função.
Apesar disso, a competência constitucional do júri prevalecerá quando se tratar de autoridade com prerrogativa de função prevista exclusivamente nas constituições estaduais ou em lei ordinária (Súmula Vinculante 454 e Súmula 721 do STF5). Está cancelada a Súmula 394 do STF, que previa: “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.
Quando existir coautoria ou participação com particular, haverá separação de processos, já que ambas as competências são constitucionais (foro especial e tribunal do júri). Além disso, a cisão processual é recomendável porque: a)assegura ao réu/particular o julgamento perante o juiz natural; b)garante-lhe o duplo grau de jurisdição; c)impede que uma circunstância de caráter pessoal ou funcional (foro especial) se comunique a um terceiro.
Mas há precedentes do STF em sentido diverso, determinando o julgamento unificado perante o tribunal em relação ao qual se tem foro especial.
3)Competência do STF etc.
Qualquer pessoa com prerrogativa de foro perante o STF (CF, art. 102, I, b e c6) será julgado pelo STF, não importando se o crime é comum, militar ou eleitoral. O mesmo vale em relação às pessoas com foro especial perante o STJ (CF, art. 105, a7).
Com relação aos tribunais de justiça dos estados, as autoridades sujeitas à sua competência serão julgadas perante o TRE quando cometerem crime eleitoral. Se praticarem crime federal, responderão perante os tribunais regionais federais.
4)Prerrogativa de foro perante tribunais distintos
No caso de coautoria ou participação de autoridades com prerrogativa de foro perante tribunais distintos, haverá separação de processos, a fim de submetê-las a julgamento pelo juízo natural (constitucional). Assim, por exemplo, se um juiz de direito comete crime junto com um deputado federal, o primeiro será julgado pelo tribunal de justiça e o segundo pelo STF.
Mas há precedente do STF no sentido de que, nesse caso, haverá julgamento unificado perante o tribunal de maior graduação (STF).
5)Exceção da verdade em crime contra a honra
Normalmente o fato de a vítima de um crime deter prerrogativa de função é irrelevante para efeito de determinação da competência.
No entanto, num processo penal destinado a apurar crime de calúnia, o réu poderá alegar exceção da verdade a fim de provar que o ofendido (v.g., juiz de direito) praticou crime (v.g., corrupção). Nesse caso, se a exceção for procedente, o ofendido terá praticado delito e responderá perante o tribunal de justiça. Como o juízo de primeiro grau não tem competência para julgar crime praticado por autoridade com prerrogativa de função, tampouco terá para decidir a exceção da verdade.
Logo, se, em crime de calúnia, houver exceção da verdade contra a autoridade com foro especial que possivelmente cometeu crime, os autos serão remetidos ao tribunal competente para decidir a esse respeito (CPP, art. 85).
Embora o artigo 85 do CPP fale de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), os tribunais têm-no aplicado apenas no caso de crime de calúnia (CP, art. 138), que admite, como regra, a exceção da verdade (CP, art. 138, §3°), visto que, para sua configuração, é essencial que se trate de imputação falsa de crime.
A injúria (CP, art. 140) não admite a exceção da verdade, logo, não comporta a aplicação do artigo 85 do CPP.
Na difamação é possível a exceção da verdade num único caso: se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções (CP, art. 139, parágrafo único).
Se o tribunal acolher a exceção da verdade, julgará improcedente a queixa ou denúncia e remeterá cópia do processo ao MP para adoção das providências cabíveis. Caso contrário, devolverá os autos ao juízo de primeiro grau para julgar o processo.
Apesar de o artigo 85 do CPP falar de “querelante”, o incidente de que trata poderá também ocorrer em caso de denúncia, já que a ação penal por calúnia contra servidor púbico no exercício de suas funções pode ser instaurada por denúncia ou por queixa (Súmula 714 do STF8).
Com a nova orientação do STF, limitativa de sua competência, o artigo 85 do CPP só incidirá quando se tratar de imputação de calúnia relativa ao exercício do mandato ou da função pública. Afinal, se, por exemplo, houver imputação de crime a um parlamentar federal sem relação alguma com o exercício do mandato, o STF não seria competente para julgar a ação penal. Quem não tem competência para julgar o processo principal, não terá para o acessório (exceção da verdade).
1Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.
2Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não Ihes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação.
3A competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional.
4A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual.
5A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela constituição estadual.
6Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente.
7Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
8É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do ministério público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções.