Todos os meios pelos quais, até hoje, quis-se tornar moral a humanidade foram fundamentalmente imorais. Nietzsche. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das letras, 2006, p.53.
Como é sabido, há quem considere a colaboração premiada imoral; logo, incompatível com o ordenamento jurídico, seja porque premiaria um traidor, seja porque estimularia uma conduta eticamente reprovável.
O equívoco é manifesto.
Com efeito, a colaboração premiada não é outra coisa senão uma confissão, embora com outro nome e com uma disciplina jurídico-penal própria, especial. E a confissão é tão legítima quanto qualquer outro meio de prova. Afinal, o investigado ou acusado, no exercício da ampla defesa, tem o direito de confessar – ou não confessar – o delito, com todas as suas circunstâncias, mencionando coautores e participes do crime, inclusive. O que não seria possível, moral ou juridicamente, é coagir o réu a confessar um crime ou proibi-lo de livremente confessá-lo.
Além disso, não existe um sistema moral universal/objetivo que valha para além da história e dos indivíduos concretamente considerados. Como disse Nietzsche, não existem fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos (Além do bem e do mal, aforismo 108). A distinção entre moral e direito – são palavras de Kelsen – não pode ser encontrada naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana.[1]A distinção entre ordem jurídica e moral tem a ver, portanto, não com o conteúdo, mas com a forma.
Justo por isso, se, da perspectiva dos criminosos, há (ou não) uma traição por parte do delator, o mesmo já não ocorre do ponto de vista do Estado, que vê na sua iniciativa uma legítima colaboração no sentido de prevenir e reprimir crimes. De mais a mais, a “ética do crime” é um problema de e entre criminosos, não um problema do Estado.
Mesmo em relação à “ética do crime”, o delator não é, ou não é forçosamente, um traidor, sobretudo quando estiver sofrendo ameaças e o “dever de lealdade e silêncio” (omertà) lhe for prejudicial. Por vezes, delatar comparsas é necessário e exige coragem.
Não bastasse isso, de acordo com a moral dominante, o indivíduo tem o dever de dizer a verdade, tanto que a lei, que o obriga a isso (art. 4°, §14, da Lei 12.850/2013), criminaliza a colaboração caluniosa (art. 19 da Lei).
Ademais, direito e moral não de confundem, nem o direito é necessariamente moral, afinal nem tudo que é lícito é honesto/moral (Paulo – Digesto). Exatamente por isso, o ordenamento jurídico é pleno de institutos questionáveis do ponto de vista moral que nem por isso são ilegítimos, a exemplo da pena de morte, do aborto legal, do agente infiltrado, da tributação de atividades ilícitas (pecunia non olet) etc.. Em suma, a eventual imoralidade de um instituto jurídico não lhe afeta a juridicidade.
Finalmente, testemunhas e informantes também delatam, e nem por isso as criticamos moralmente.
Por último, as finalidades legais da delação (prevenir novos crimes, localizar vítimas, identificar coautores, recuperar o produto do crime etc.) são justas, morais e legítimas, a justificá-la plenamente. Como se vê, é possível, inclusive, colaboração sem delação de comparsas de crime (só recuperar ativos etc.). A atual colaboração não exige, portanto, inevitavelmente, delação.
Mais: premiar – ou não – a colaboração, e como fazê-lo, é uma opção político-criminal legítima.
Em suma, dizer-se que o delator é um traidor, ou que o é necessariamente, é um clichê, um simples preconceito moral, que não compromete, absolutamente, a legitimidade da colaboração.
Como é óbvio, advogar a moralidade e a juridicidade da colaboração premiada não significa ignorar ou legitimar possíveis abusos na sua aplicação, problema diverso e passível de ocorrer com qualquer instituto jurídico.
[1]. Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 71.