Citações: Jacques Derrida

15 de outubro de 2009

Montaigne falava de fato, são suas palavras, de um “fundamento místico” da autoridade das leis: “Ora, as leis se mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm outro […]. Quem a elas obedece porque são justas não lhes obedece justamente pelo que deve” – p. 21

Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação preexistente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar. – p. 24

Na estrutura que assim descrevo, o direito é essencialmente desconstruível, ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis ( e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação por vezes a melhora do direito), ou porque seu fundamento último, por definição, não é fundado. – p. 26

Mas acredito que não há justiça sem essa experiência da aporia, por impossível que seja. A justiça é uma experiência do impossível. […] O direito não é a justiça. – p. 30

Para ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la, aprová-la, confirmar seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se a lei não existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso. […]. Em suma, para que uma decisão seja justa e responsável, é preciso que, em seu momento próprio, se houver um, ela seja ao mesmo tempo regrada e sem regra, consertadora da lei e suficientemente destruidora ou suspensiva da lei para dever reinventá-la em cada caso, re-justificá-la, reinventá-la pelo menos na reafirmação e na confirmação nova e livre de seu princípio. Cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codificada pode nem deve absolutamente garantir. – p. 44

Ora, a justiça, por mais inapresentável que permaneça, não espera. Ela é aquilo que não deve esperar. Para ser direto, simples e breve, digamos isto: uma decisão justa é sempre requerida imediatamente, de pronto, o mais rápido possível. – p. 51

O instante da decisão é uma loucura, diz Kierkegaard. Isso é particularmente verdadeiro com respeito ao instante da decisão justa, que deve rasgar o tempo e desafiar as dialéticas. É uma loucura. Uma loucura, pois tal decisão é, ao mesmo tempo, superativa e sofrida, conservando algo de passivo ou de inconsciente, como se aquele que decide só tivesse a liberdade de se deixar afetar por sua própria decisão e como ela lhe viesse do outro. – p. 52

Há um porvir para a justiça, e só há justiça na medida em que seja possível o acontecimento que, como acontecimento, excede ao cálculo, às regras, aos programas, às antecipações etc. Esse excesso da justiça sobre o direito e sobre o cálculo, esse transbordamento do inapresentável sobre o determinável, não pode e não deve ser vir de álibi para ausentar-se das lutas jurídico-políticas, no interior de uma instituição ou de um Estado, entre instituições e entre Estados. – p. 55

Tal situação é, de fato, a única que nos permite pensar a homogeneidade do direito e da violência, a violência como exercício do direito e o direito como exercício da violência. A violência não é exterior à ordem do direito. Ela não consiste, essencialmente, em exercer sua potência ou uma força brutal para obter tal ou tal resultado, mas em ameaçar ou destruir determinada ordem de direito, e precisamente, nesse caso, a ordem de direito estatal que teve de conceder esse direito à violência, por exemplo, o direito de greve. – p. 81

O que o Estado teme, o direito em sua maior força, não é tanto o crime ou o banditismo, mesmo em grande escala, como a máfia ou o grande tráfico da droga, desde que estes transgridam a lei para atingir benefícios particulares, por mais importante que sejam. […] O Estado teme a violência fundadora, isto é, capaz de justificar, legitimar (begründen) ou de transformar as relações de direito (Rechtsverhältsse) […] Aquilo que ameaça o direito, ao direito ao direito, à origem do direito. – p. 82

 

O direito é, ao mesmo tempo, ameaçador e ameaçado por ele mesmo. – p. 96

Benjamin parece pensar que os discursos contra o direito de punir, e principalmente contra a pena de morte, não superficiais, e não por acidente. Pois eles não admitem um axioma essencial para a definição do direito. Qual? Pois bem, quando se ataca a pena de morte, não se contesta uma pena entre outras, mas o próprio direito em sua origem, em sua própria ordem. […] A ordem do direito manifesta-se plenamente na possibilidade da pena de morte. – p. 97

Nunca se sabe com quem estamos tratando, e esta é a definição da polícia, singularmente da polícia do Estado, cujos limites são, no fundo, indetermináveis. Essa ausência de fronteira entre as duas violências, essa contaminação entre fundação e conservação é ignóbil, é a ignomínia (das Schmackvolle) da polícia. Antes de ser ignóbil em seus procedimentos, na inquisição inominável à qual se entrega, sem nenhum respeito, a violência policial, a polícia moderna é estruturalmente repugnante, imunda por essência, em razão de sua hipocrisia construtiva. […] Mesmo que ela não promulgue a lei, a polícia se comporta como um legislador nos tempos modernos, para não dizer como o legislador dos tempo modernos. Ali onde há polícia, isto é, em toda parte, e aqui mesmo, já não se pode discernir entre as duas violências, a conservadora e a fundadora, e este é o equívoco ignóbil, ignominioso, revoltante. p. 98-100

Extraídas de “Força de Lei”. Martins Fontes: S.Paulo, 2007.

 

 

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