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Casa de prostituição e política criminal

Recentemente o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar habeas corpus (HC 104467/RS, Relatora Ministra Cármen Lúcia) visando a trancar ação penal por crime de casa de prostituição, assim decidiu:

 

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL: IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA TÍPICA. CONSTRANGIMENTO NÃO CONFIGURADO. 1. No crime de manter casa de prostituição, imputado aos Pacientes, os bens jurídicos protegidos são a moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância social a serem resguardados pelo Direito Penal, não havendo que se falar em aplicação do princípio da fragmentariedade. 2. Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais. Nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (com alteração da Lei n. 12.376/2010), “não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. 3. Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse parte dos costumes ou fosse socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei penal em vigor. 4. Habeas corpus denegado.

No sentido contrário, é a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

CASA DE PROSTITUIÇÃO. DESCRIMINALIZAÇÃO POR FORÇA SOCIAL. À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribuí para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos como ´acompanhantes´, ´massagistas´, motéis, etc., que, ainda que extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal, haja vista que tal conduta, já há muito, tolerada, com grande sofisticação, e divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem assim não será as de origem mais modesta e mais deficiente economicamente. Apelação improvida. Unânime” (Apelação Crime n.° 70000586263, 5ª Câmara Criminal, TJRS, Rel. Des. Aramis Nassif, j. em 16.02.2000).

Subjacente a isso, além da questão moral, está a discussão sobre os limites do poder punitivo do Estado. A questão fundamental reside em saber, portanto, se o Estado, contrariamente à vontade dos próprios indivíduos que pretende proteger – indivíduos adultos e capazes -, pode criminalizar, direta ou indiretamente, certas práticas tidas como ofensivas à dignidade da pessoa humana, concretamente considerada.

 

Nélson Hungria, ao sustentar a legitimidade da intervenção penal no particular, afirmava:

 

Talvez se afigure, prima facie, que nos países, como o nosso, em que não se proíbe a prostituição em si mesma, seja injustificável a repressão dos lenões, pois, se tal ou qual fato é permitido ou penalmente indiferente, não se deveriam, coerentemente, incriminar os que lhe são famulativos ou acessórios (accessorium sequitur suum principale). Este raciocínio, porém, estaria abstraindo que a política criminal muitas vezes desatende à lógica, para seguir critérios de oportunidade e conveniência. A prostituição é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que, de qualquer modo, contribuem para maior fomento e extensão dessa chaga social. Se a prostituição é um mal deplorável, não deixa de ser, até certo ponto, em que pese aos moralistas teóricos, necessário. Embora se deva procurar reduzi-la ao mínimo possível, seria desacerto a sua incriminação. Sem querer fazer elogio, cumpre reconhecer-lhe uma função preventiva na entrosagem da máquina social: é uma válvula de escapamento à pressão de recusável instinto, que jamais se apazigou na fórmula social da monogamia, e reclama satisfação até mesmo que o homem atinja a idade civil do casamento ou a suficiente aptidão para assumir os encargos da formação de um lar. Anular o meretrício, se isso fora possível, seria inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer referver a libido para a prática de todos os crimes sociais.1


Em termos semelhantes, e com uma argumentação um tanto curiosa, dizia Magalhães Noronha:

 

Enquanto a casa paterna e das famílias se fecharem para a donzela seduzida; enquanto a mulher viver na dependência econômica do homem e enquanto todos os adultos não casarem – aliás, bem cedo -, haverá prostituição. Pode ela variar de forma, tomar diversos aspectos – de portas abertas, clandestinamente etc. – mas existirá sempre. Imagine-se se hipoteticamente conseguisse o Estado asilar e acolher em estabelecimentos de assistência social todas as infelizes, qual a situação dos milhares de milhões de homens solteiros e viúvos? É visível que mais que nunca o homossexualismo campearia e se multiplicariam assustadoramente os atentados contra a honra das famílias. De uma coisa podemos estar certos: não é pelo fato de considerá-la crime que desaparecerá.2


Enfim, o discurso punitivo é essencialmente o mesmo: embora a prostituição seja inevitável e até necessária, ela é em si mesmo um mal, uma atividade imoral e repugnante, que não pode ou não deve ser criminalizada. No entanto, a criminalização de quem explore a prostituição está plenamente justificada.

 

Temos que semelhante discurso, além de grandemente hipócrita, é insustentável político-criminalmente.

 

Em primeiro lugar, porque as pessoas (homens e mulheres adultas) são, em princípio, livres para disporem de seus corpos como bem entenderem, podendo fazê-lo gratuita ou onerosamente. E o Estado (penal) não pode nem deve pretender proteger pessoas adultas e capazes contra suas próprias decisões, como se fossem crianças indefesas.

 

Em segundo lugar, porque, contrariamente ao que pretende o discurso punitivo, aquilo que não pode ou não deve ser proibido/criminalizado pela via direta (v.g., uso de droga, prostituição etc.), não pode nem deve (como regra) ser proibido/criminalizado pela via indireta. Consequentemente, também a conduta do sujeito/empresa que explore a prostituição não pode nem deve ser tipificada, razão pela qual a atividade deve ser autorizada e legalmente explorada.

 

Em terceiro lugar, porque proibir a casa de prostituição não é controlar nem prevenir, mas simplesmente remeter a atividade proibida para a clandestinidade, onde não existe absolutamente nenhum controle (oficial), razão pela qual a intervenção penal é no particular absolutamente inadequada e contraproducente, pois cria mais problemas do que resolve.

 

Em quarto lugar, porque, uma vez regulamentado o exercício da prostituição, poder-se-ia exercer um controle mínimo por parte do Estado, visando a proteger clientes e prestadores de serviço, assegurando-se-lhes, inclusive, como toda atividade legal, direitos trabalhistas, previdenciários etc.

 

Em quinto lugar, porque, a pretexto de proteger, por meio da criminalização, a dignidade da pessoa humana, tais indivíduos ficam, em verdade, absolutamente desprotegidos e vulneráveis, e submetidos a toda sorte de violência e constrangimentos ilegais. E, mais, a pretexto de tutelar a dignidade da pessoa humana, o Estado acaba por negá-la e violá-la manifestamente, tratando tais indivíduos, não como sujeitos de direito, mas como simples objeto, negando-se-lhes a liberdade de decidirem por conta própria.

 

Em sexto lugar, porque a casa de prostituição é, em princípio, um crime sem vítima (exceto quando envolva incapazes). E eventuais crimes (maus-tratos, sequestro ou cárcere privado, extorsão etc.) contra prostitutas (ou clientes) já são autonomamente puníveis.

 

Finalmente, não é preciso muito esforço para imaginar atividades que, embora legais, sejam mais indignas ou penosas do que o exercício da prostituição, especialmente em razão das condições degradantes, desumanas etc. Nem cabe ignorar que a prostituição está presente em todos os lugares: jornais, televisão, cinema, internet, outdoor, casas de massagem etc., a demonstrar uma evidente incompatibilidade entre a tolerância real e a intolerância legal.

 

Enfim, quanto à prostituição e outras tantas atividades, embora o Estado possa intervir por outros meios mais adequados e menos lesivos à liberdade, não está minimamente justificada a criminalização, quer direta, quer indiretamente, motivo pelo qual a pena pública constitui uma violência absolutamente despropositada.

 

 

1Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 169/170.

2Direito Penal. S.Paulo: Saraiva, 2003, p. 213.

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