Para Kant, a pena se justificava pelo simples fato de retribuir (justamente) um crime praticado. A pena constituía, então, uma reação estatal legítima à ação ilegítima do indivíduo, independentemente de considerações de caráter utilitário, razão pela qual era de todo irrelevante investigar se a pena seria ou não capaz de motivar ou dissuadir delinquentes, e assim prevenir, em caráter geral ou especial, novos delitos. Enfim, a pena se justificava quia peccatum est.
Com efeito, de acordo com Kant, “as penas são, em um mundo regido por princípios morais (por Deus), categoricamente necessárias”.1 Justamente por isso, “ainda que uma sociedade se dissolvesse por consenso de todos os seus membros (v. g., se o povo que habitasse uma ilha decidisse separar-se e dispersar-se pelo mundo), então, o último assassino deveria ser executado”.2
Por isso, a lei de talião (dente por dente, olho por olho) seria o paradigma da verdadeira justiça, pois “só a lei de talião proclamada por um tribunal pode determinar a qualidade e a quantidade da punição”,3 já que “o mal imerecido que tu fazes a outrem, tu fazes a ti mesmo, se tu o ultrajas, ultrajas a ti mesmo, se tu o roubas, roubas a ti mesmo, se tu o matas, matas a ti mesmo”4. Consequentemente, “todos os criminosos que cometeram um assassinato, ou ainda os que ordenaram ou nele estiveram implicados, hão de sofrer também a morte; assim o quer a justiça enquanto ideia do poder judicial, segundo leis universais, fundamentadas a priori.”.5
Se déssemos razão a Kant, não faria sentido algum a previsão, entre outras situações, de causas de extinção de punibilidade (prescrição etc.), nem de causas especiais de isenção de pena (v.g., alguns crimes patrimoniais praticados contra ascendentes e descendentes), por implicarem a renúncia à punição do autor (em tese) culpado de crime. E uma teoria que veja a pena como uma retribuição jurídica pura e simples não tem como explicar tais casos.
É que as citadas hipóteses de isenção de pena só fazem sentido se tivermos em conta que o direito penal e os conceitos com os quais trabalha (crime, pena etc.) são dimensões do poder político, razão pela qual, antes de tudo, cumpre saber o que pode e deve o Estado, num dado momento histórico, criminalizar/descriminalizar e como fazê-lo.
E uma teoria retributiva simplesmente não tem como responder a questões dessa ordem, visto pressupor já decidido o problema de saber o que pode e deve ser punido e como punir. E tampouco pode dar resposta às críticas das teorias que, partindo do pressuposto de que o sistema penal é estruturalmente injusto, pretendem deslegitimá-lo e aboli-lo, total ou parcialmente.6
Apesar disso, seja qual for a finalidade (declarada) assinalada à pena, ela sempre deverá ter como pressuposto irrenunciável o cometimento de uma infração penal; logo, é, nesse sentido, uma retribuição. Quanto a isso, estamos todos de acordo.
Ferrajoli tem razão, portanto, quando assinala que as teorias retribucionistas confundem razão legal (por que castigar), que se refere à legitimação externa da intervenção penal, com razão judicial (quando castigar), que tem a ver com a legitimação interna, e que consiste precisamente na retribuição. E Kant só se ocupou, em verdade, desse segundo problema.7
1Citado por Welzel, Derecho penal alemán, cit., p. 284.
2La metafisica dei costumi: la dottrina del diritto, trad. Giovanni Vidari, Milano: Studio Editoriale Lombardo, 1916, parte 1ª, p. 144.
3Kant, La metafisica, cit., pp. 142-143.
4Kant, La metafisica, cit., p. 142.
5Kant, Metafisica dos Costumes. Parte 1. Lisboa: Edições 70, p.149.
6No mesmo sentido, Ferrajoli. Derecho y razón. Madrid: Trotta editorial, 1995, p. 256-258.
7Derecho y razón. Madrid: Trotta editorial, 1995, p.256.