A propósito da justificação da pena em Kant

16 de junho de 2011

Para Kant, a pena se justificava pelo simples fato de retribuir (justamente) um crime praticado. A pena constituía, então, uma reação estatal legítima à ação ilegítima do indivíduo, independentemente de considerações de caráter utilitário, razão pela qual era de todo irrelevante investigar se a pena seria ou não capaz de motivar ou dissuadir delinquentes, e assim prevenir, em caráter geral ou especial, novos delitos. Enfim, a pena se justificava quia peccatum est.

Com efeito, de acordo com Kant, “as penas são, em um mundo regido por princípios morais (por Deus), categoricamente necessárias”.1 Justamente por isso, “ainda que uma sociedade se dissolvesse por consenso de todos os seus membros (v. g., se o povo que habitasse uma ilha decidisse separar-se e dispersar-se pelo mundo), então, o último assassino deveria ser executado”.2

Por isso, a lei de talião (dente por dente, olho por olho) seria o paradigma da verdadeira justiça, pois “só a lei de talião proclamada por um tribunal pode determinar a qualidade e a quantidade da punição”,3 já que “o mal imerecido que tu fazes a outrem, tu fazes a ti mesmo, se tu o ultrajas, ultrajas a ti mesmo, se tu o roubas, roubas a ti mesmo, se tu o matas, matas a ti mesmo”4. Consequentemente, “todos os criminosos que cometeram um assassinato, ou ainda os que ordenaram ou nele estiveram implicados, hão de sofrer também a morte; assim o quer a justiça enquanto ideia do poder judicial, segundo leis universais, fundamentadas a priori.”.5

Se déssemos razão a Kant, não faria sentido algum a previsão, entre outras situações, de causas de extinção de punibilidade (prescrição etc.), nem de causas especiais de isenção de pena (v.g., alguns crimes patrimoniais praticados contra ascendentes e descendentes), por implicarem a renúncia à punição do autor (em tese) culpado de crime. E uma teoria que veja a pena como uma retribuição jurídica pura e simples não tem como explicar tais casos.

É que as citadas hipóteses de isenção de pena só fazem sentido se tivermos em conta que o direito penal e os conceitos com os quais trabalha (crime, pena etc.) são dimensões do poder político, razão pela qual, antes de tudo, cumpre saber o que pode e deve o Estado, num dado momento histórico, criminalizar/descriminalizar e como fazê-lo.

E uma teoria retributiva simplesmente não tem como responder a questões dessa ordem, visto pressupor já decidido o problema de saber o que pode e deve ser punido e como punir. E tampouco pode dar resposta às críticas das teorias que, partindo do pressuposto de que o sistema penal é estruturalmente injusto, pretendem deslegitimá-lo e aboli-lo, total ou parcialmente.6

Apesar disso, seja qual for a finalidade (declarada) assinalada à pena, ela sempre deverá ter como pressuposto irrenunciável o cometimento de uma infração penal; logo, é, nesse sentido, uma retribuição. Quanto a isso, estamos todos de acordo.

Ferrajoli tem razão, portanto, quando assinala que as teorias retribucionistas confundem razão legal (por que castigar), que se refere à legitimação externa da intervenção penal, com razão judicial (quando castigar), que tem a ver com a legitimação interna, e que consiste precisamente na retribuição. E Kant só se ocupou, em verdade, desse segundo problema.7

1Citado por Welzel, Derecho penal alemán, cit., p. 284.

2La metafisica dei costumi: la dottrina del diritto, trad. Giovanni Vidari, Milano: Studio Editoriale Lombardo, 1916, parte 1ª, p. 144.

3Kant, La metafisica, cit., pp. 142-143.

4Kant, La metafisica, cit., p. 142.

5Kant, Metafisica dos Costumes. Parte 1. Lisboa: Edições 70, p.149.

6No mesmo sentido, Ferrajoli. Derecho y razón. Madrid: Trotta editorial, 1995, p. 256-258.

7Derecho y razón. Madrid: Trotta editorial, 1995, p.256.

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10 Comentários

  1. Eu continuo achando que kant oferece a melhor justiicação. As teorias preventivas se fundam em pressupostos jamais comprovados.

  2. Parece-me que, tal como ensinou Lizst, a função do direito penal é a função de todo o direito, razão pela qual não cabe pretender assinlar à sanção penal uma função diversa da sanção não penal (civil etc.).

  3. Essas são, dentre outras, as bases sobre as quais se ergueram a teoria sistêmica de Jakobs. Os princípios fundamentais de seu sistema se encontram nas obras de LUHMANN, embora ultimamente verifica-se seu apartamento dessas raízes, em favor de uma filosofia jurídica própria, que se vale sobremaneira dos postulados de KANT e, principalmente, de HEGEL, e demonstram que o seu pensamento ainda encontra-se em processo de construção.

    Para JAKOBS o delito afigura-se, antes de tudo, a lesão de um dever de não violar as normas penais e não gerar decepções, no que se aproxima da versão kantiana. A teoria sistêmica conduz ao neo-retribucionismo, no qual o Direito Penal se justifica intra-sistematicamente em razão da conservação do sistema social legitimar-se pela própria necessidade de sua auto-manutenção. Não é desconhecida a sentença consistente em que, com Jakobs, KANT, HEGEL e KELSEN ressuscitam-se para o Direito Penal.

    Sobre o tema, segue texto extraído do trabalho intitulado de “Uma perspecitva integradora ao estudo do perigo abstrato”, depositado na Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade Jacy de Assis, em janeiro de 2008.

    “Baseado na teoria dos sistemas de LUHMANN, considera JAKOBS que o mundo dota-se de pleno sentido e caracteriza-se, sobretudo, pelas infinitas possibilidades de comportamentos, que se elevam de acordo com a complexidade do sistema social respectivo e à idéia de liberdade – ou de direito – dominante. Nesse contexto, os indivíduos não sabem o que esperar dos outros e menos ainda das respostas a uma ação pessoal – contingência -, fator de incerteza e instabilidade.

    Em contrapartida, sistemas sociais são formados com o fim de reduzir a complexidade do mundo e possibilitar que as pessoas o compreendam, para proporcional menos imprevisibilidade e insegurança no convívio social, com o fornecimento de modelos de conduta indicativos das expectativas quanto aos demais.

    Nesse espeque, JAKOBS distingue as expectativas cognitivas das normativas. As primeiras se relacionam com o mundo da causalidade e por isso deixam de prevalecer quando frustradas, pois a realidade deve prevalecer e o expectador adaptar-se a ela. As normativas, situadas no mundo da finalidade, devem prevalecer a despeito de sua violação, uma vez que a norma vale mesmo que os fatos revelem o contrário – contrafaticamente.
    O Direito Penal, como um dos principais sistemas de controle social, procede à seleção interna dessas expectativas e as transformam em norma, como expectativas de comportamento estabilizadas contrafaticamente. Como estas não podem decepcionar sempre, para não perderem credibilidade e, consequentemente, deixarem de funcionar como pautas de orientação, em face da sua violação o Direito deve reagir e afirmar que equivocada apresenta-se a realidade e que a norma continua válida.

    Isso ocorre por meio da imposição da pena, definida como a demonstração da vigência da norma à custa de um sujeito competente, o que conduz JAKOBS a entender que ao Direito Penal cumpre garantir a identidade normativa da sociedade, sua constituição.

    Um feixe de expectativas ligado a determinada pessoa constitui-se em seu papel social, que nessa acepção configura-se em sua multiplicidade – pedestre, motorista, magistrado, comerciante, pai, professor, dentre inúmeros outros – delimitadores da função individual que cada qual deve desempenhar em um específico contato social e o que dele se pode esperar, o que comprova que cada papel social representa um feixe de expectativas como enunciado.

    Cada indivíduo, de acordo com o papel social que assume, torna-se garante dessas expectativas e competente por organizar seu círculo de interações de modo a não violar as normas penais, com ocasionamento de decepções.

    Uma vez violada a expectativa, o Direito deve explicar o fato de algum modo – caso fortuito, estado de necessidade, culpa exclusiva da vítima, dentre outros -, ou declarar o sujeito competente por sua violação e estabelecer que à sua custa a norma seja reestabilizada, com garantia da identidade normativo-social.

    Portanto, para JAKOBS o Direito Penal não cuida de proteger bens jurídicos, mas de confirmar a identidade normativa da sociedade. Os bens jurídicos estão constantemente expostos a menoscabos das mais diversas ordens e o Direito Penal não se ocupa da maioria deles. Esses bens só teriam alguma relação como o Direito na medida em que se estabeleça que as pessoas devam respeitá-los.

    Nesse caminho, considera mais coerente reconhecer que sua relevância para o Direito é relativa, por somente ganhar significado em face de condutas perigosas. Enquanto a morte por velhice revela-se como a perda de um bem, a por assassinato configura-se como lesão de um bem jurídico. Daí deduzir que o Direito Penal não vise à proteção genérica de bens jurídicos, mas apenas contra certos ataques, por não constituir-se em muro protetor colocado ao seu redor e sim um instrumental das relações humanas. Como protetor de bens jurídicos, o Direito Penal revela que uma pessoa, encarnada em seus bens, é protegida contra ataques de outrem.

    Mediante isso, impõe-se afirmar que o Direito Penal visa garantir aos cidadãos a confiança de que seus bens não sofrerão menoscabos por condutas alheias, pois, desde este ponto de vista, os mesmos afiguram-se como pretensão de seu titular de que serão respeitados, ou seja, não como objetos físicos ou similares, mas como expectativa normatizada.

    A configuração de um injusto penal não está na valoração de sucessos no mundo exterior, mas no seu significado para a vigência da norma. Assim, um bem jurídico não depende senão de sua valoração positivo-normativa, pela qual adquire o gozo de proteção jurídica.

    Para JAKOBS o delito afigura-se, antes de tudo, a lesão de um dever de não violar as normas penais e não gerar decepções. Em certas classes de crime, como os cometidos no exercício de função pública, a exemplo da prevaricação, esse caráter mostra-se evidente e somente pode ser corretamente compreendido como infração de um dever e não lesão de bem jurídico, o que vem a confirmar que o núcleo de um delito não consiste na lesão de bens e sim na infração de deveres.

    Inicialmente JAKOBS coloca a pena e o Direito Penal numa única conjuntura teleológica e reconhece como sua tarefa a prevenção geral positiva, por meio do exercício de reconhecimento da vigência da norma. Ao Direito Penal compete garantir a função orientadora das normas penais, que quando infringidas requerem intacta manutenção, pois, do contrário restar-lhe-ão prejudicadas na sua função orientadora. É o que se denomina prevenção geral positiva fundamentadora ou integradora, consoante o exercício de fidelidade ao direito.

    Contudo, em seus novos trabalhos, abandona esse marco teleológico e adota expressamente a teoria da pena de HEGEL, ao rechaçar que a aplicação da norma persiga a finalidade de influir no comportamento do indivíduo e legitimá-la apenas pela necessidade de marginalizar a afirmação do autor de que a expectativa não valha.

    Presta-se o Direito Penal apenas à função de restaurar a vigência da norma violada, de modo que a imposição da pena apenas represente o cumprimento de seu fim, como meio de confirmar a constituição da sociedade.

    Nesse pano de fundo ideológico, revela-se difícil a desvinculação dos conceitos de norma e valor e, por conseguinte, de direito e moral. Se as normas não estão vinculadas a uma finalidade social e a serviço de interesses concretos dos cidadãos, sua obediência é, sob essa perspectiva, um dever moral, nos moldes do imperativo categórico kantiano: seja uma pessoa e respeite os demais como pessoas (!), com único diferencial da transferência de centro de gravidade da subjetividade individual para a do sistema, a partir do que o caráter conflituoso do convívio social e o aspecto coativo das normas penais desaparecem em um emaranhado técnico, segundo o qual o delito, enquanto desvio, qualifica-se como mera complexidade clamante por redução.

    Nesse sentido, a teoria sistêmica conduz ao neo-retribucionismo, no qual o Direito Penal se justifica intra-sistematicamente em razão da conservação do sistema social legitimar-se pela própria necessidade de sua auto-manutenção.

    Bem por isso LESCH considera a denominação função geral preventiva inadequada para designar a correta função da pena num sistema dogmático funcional-sistêmico, pois mais correto concebe estabelecer que seu fim seja a retribuição funcional à culpabilidade do autor pela violação da norma, pelo que conclui tratar-se propriamente de uma teoria funcional da retribuição.

    Além disso, JAKOBS evita afirmações sobre a legitimidade ou ilegitimidade do conteúdo das normas, porquanto as consideram carentes de cientificidade. Tal tarefa, a seu ver, circunscreve-se à esfera política. Disso depreende-se que KANT, HEGEL e KELSEN ressuscitam-se para o Direito Penal.

    Conforme assinala ROXIN, não há dúvidas de que a política criminal, em si, não seja uma ciência, apesar de não haver algo mais jurídico, e, portanto, científico, que estabelecer limites ao legislador penal desde os postulados político-criminais acolhidos pela Ordem Constitucional Democrática.

    Não satisfaz aos propósitos de um pensamento dogmático que o Direito Penal não sirva especificamente aos seres humanos. Reconhece-se a conexão entre sistemas normativo e social, ao contrário de considerar este alheio ao específico objeto de estudo da teoria jurídica, nos moldes de HANS KELSEN, que limita a dogmática aos aspectos internos do sistema normativo.

    Ora, o sistema social não deve ser conservado em seu próprio benefício, mas em favor das pessoas que vivem em sociedade. Isso pressupõe entender o Direito não como um sistema normativo cujo sentido se esgote na manutenção das próprias normas, sem qualquer referência externa.

    Observa SCHÜNEMANN que o erro fundamental de JAKOBS reside em seu normativismo extremo e livre de empirismo, pelo qual se ignora as decisões adotadas pelo legislador e se contempla o direito como sistema fechado e auto- referente, com limitação da dogmática jurídico-penal à analise do elemento normativo-funcional do Direito Penal positivo e exclusão de quaisquer considerações empíricas e valorativas externas. Esse normativismo radical, científico e politicamente desnecessário, priva de limites o poder punitivo do Estado.

    Nesse espeque, o funcionalismo sistêmico encerra fundamentação puramente formal, circular e com alta carga moral, pois as decisões acerca da necessidade de reafirmar a vigência da norma são válidas apenas porque assim são entendidas no momento de tomá-las.

    Se os conceitos jurídicos são deduzidos exclusivamente do sistema, sem o conhecimento do mundo natural e sem conexão funcional aos fins sociais concretos, são necessariamente criados de forma circular e, dessa forma, os papeis sociais que demarcam os deveres do cidadão, preenchidos com qualquer conteúdo. Conseqüentemente acarreta-se à dogmática perda de caráter crítico, como instrumento de legitimação do Direito Penal.

    JAKOBS funcionaliza – normativiza – não apenas os conceitos do sistema jurídico-penal, como também ele próprio no âmbito de uma teoria sociológica e a partir daí considera que o que lhe for impróprio reside no ambiente e revela-se indiferente penal. Esse sistema não leva em consideração a pessoa humana, mas apenas as necessidades de sua auto-manutenção. Pouco lhe importa as conseqüências que norteiem o autor, o que o caracteriza imbuído de caráter abstrato e artificial, alheio ao indivíduo e indiferente aos concretos valores a que deve se subordinar o sistema punitivo. Ainda considera o indivíduo mero subsistema psicofísico ou centro de imputação de responsabilidades.

    O Direito Penal deve vincular-se a finalidades outras que não seja sua própria manutenção. Como já assinalado há tempos por VON LISZT, um conceito limite é um conceito que translada do campo de uma ciência – sistema – para o campo da outra, sem que possa determiná-lo ou fundamentá-lo, já que não pertence mais a ela, mas, a outro campo de saber.

    Todo sistema tem determinadas exigências internas, que condicionam sua manutenção e impedem sua dissolução e confusão com o meio. Considerar, contudo, o Direito como sistema normativo não conduz à conclusão de que somente devam ser tomados em consideração elementos dessa natureza, nem que sua função se esgote na sua própria subsistência, pois ainda que os diversos sistemas e subsistemas sejam autopoiéticos, não podem ser excluídas suas interações e mútuos condicionamentos, por revelarem-se necessários à própria adaptação ao ambiente.

    Uma das possíveis formas de interação entre os diversos sistemas é a subordinação, em conformidade com o nível hierárquico no sistema social global. Assim, do mesmo modo que determinado elemento sistemático pode ser ou não funcional com relação ao próprio sistema em que se encarta, um sistema pode ser ou não funcional com relação aos outros com os quais mantém relação de coordenação ou subordinação.

    É nesse ponto que o funcionalismo teleológico supera não apenas os modelos dogmáticos anteriores, como também o funcionalismo sem limites de JAKOBS, pois o sistema jurídico-penal reconstrói-se a partir dos valores político-criminais fornecidos pela Constituição.”

  4. Dizer que as teorias preventivas se fundamentam em dados indemonstráveis; e que as retribucionistas (como a de Kant), ao contrário, se fundam em argumentos demonstráveis, é no mínimo, confuso: O que é justiça? O que é livre-arbítrio? Quem é livre? Em que circunstâncias? Vá saber!

    Os neokantistas, como Kelsen, e também Jakobs (por que não?), tão bem descrito pelo colega acima, nenhum deles era tão kantista como Kant.

    A teoria de Jakobs é semelhante a uma bela e desconhecida mulher, sedutora e perigosa.

  5. Corrigindo: Nem mesmo Kant foi tão “kantista” como os neokantistas, dentre os quais se inclui Kelsen e, numa linha bem mais avançada, também Jakobs.

  6. Muito bom o texto. Gostaria de fazer uma sugestão: seria importante que o site colocasse à disposição uma ferramenta para comunicar com redes sociais (facebook, twitter, etc…), de modo que fosse possível compartilhar estes textos!

    No mais, muito bom o conteúdo!

  7. Excelentes colocações no texto. Agora, haveria um direito penal a priori que se colocasse acima da própria vontade Estatal? Digo isto porque o poder do Estado de decidir quais são as condutas criminosas pode gerar atrocidades imensuráveis, como exemplo a condenação à morte por infidelidade, no Iran.

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