A mentira pode majorar a pena?

28 de julho de 2015

Há quem diga que sim, sob a alegação de que, ao mentir em juízo, o réu viola os princípios da boa-fé objetiva e da eticidade; logo, a pena seria majorável a título de personalidade e/ou conduta social.

A tese, porém, é de todo infundada, visto que: 1) Num sistema processual penal democrático o réu não pode ser coagido a produzir prova contra si mesmo, razão pela qual pode se valer do direito ao silêncio, podendo mentir, inclusive (CF, art. 5°, LXIII)[1]; 2) O dever de dizer a verdade só pode ser imposto a testemunha, perito etc., os quais responderão, em tese, por crime de falso testemunho (CP, art. 342[2]); 3) O direito à ampla defesa permite a alegação de toda e qualquer tese, por mais inverossímil ou mesmo imoral; 4) A confissão é uma faculdade, e não uma imposição legal; 5) Mentir não é, em princípio, crime algum; tampouco a mentira pode justificar a aplicação de pena ou acréscimo de pena; 6) O só fato de mentir-se em juízo não diz absolutamente nada sobre a personalidade ou a conduta social do acusado; 7) A mentira não é condenável em si mesma, assim como a verdade não é em si mesma louvável, tudo dependendo do contexto e das motivações subjacentes[3]; 8) O interrogatório é essencialmente um meio de defesa.

Além disso, as atuais circunstâncias judiciais da personalidade e da conduta social são incompatíveis com um direito penal do fato (democrático), segundo o qual o agente deve responder pelo que faz e não pelo que é. Justamente por isso, o Projeto de Reforma do Código Penal (PLS nº 236/2012 do Senado Federal) prevê a abolição pura e simples dessas circunstâncias.

Como escreve Ferrajoli, não cabe ao juiz decidir sobre a moralidade, o caráter ou outros aspectos da personalidade do réu, mas apenas apreciar fatos penalmente proibidos, os quais são os únicos que podem ser provados pela acusação e refutados pela defesa. Não lhe é dado, por conseguinte, julgar a alma do imputado, tampouco formular juízos morais sobre a sua pessoa[4].

[1]Como diz Ferrajoli, o princípio nemo tenetur se detegere é a primeira máxima do garantismo processual acusatório e dela se seguem, como corolários, além do direito ao silêncio, a faculdade de o imputado a faltar com a verdade em suas respostas (Derecho y Razón. Madrid: Trotta, p. 608).

[2] Art. 342 do CP. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

[3] Como disse Nietzsche, “no fundo, todas as grandes paixões são boas se se lhes dá  boa direção e carreira; a cólera, o prazer, o temor, o ódio, a esperança, o triunfo, a desesperação ou a crueldade. (…) Desde o momento em que se nega o Deus do ideal ascético, há que propor este problema do valor da verdade. A vontade da verdade necessita de uma crítica; é preciso pôr em dúvida o valor da verdade” (A Genealogia da Moral. São Paulo: Centauro, 2002, p. 97 e 106).

[4] Derecho y Razón. Madrid: Trotta, p. 223.

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Comentários

  1. Análise muito interessante. Acredito que a mentira não esteja vinculada ao silêncio. Ela só não pode ser utilizada em dosimetria de pena por ausência de previsão legal.

    Acredito que seja pertinente destacar que Inglaterra e EUA (diversas Cortes Americanas), os berços do direito ao silêncio permitem que o silêncio ou a mentira seja tomada em prejuízo do acusado. Há julgados do TEDH permitindo tal prática.
    A título de argumentação :O Criminal Justice and Public Order Act de 1994 determina que, uma vez que o acusado seja alertado das conseqüências de sua falha no testemunho, “a corte ou júri (…) pode tomar suposições da falha dos acusados em dar provas.”. E mais, a lei solicita que jurados e juízes tomem conseqüências do silêncio os réus nos pré-julgamentos em muitas situações (HELMHOLZ, R.H.; GRAY, Charles M.; LANGBEIN, John H.; MOGLEN, Eben; SMITH, Henry E.; ALSCHULER, Albert W. The Privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: The University of Chicago Press, 1997.)

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