A lei que cria falta grave retroage em prejuízo do condenado?

23 de setembro de 2020

A lei que cria falta grave retroage em prejuízo do condenado?

Escrito por BIANCA BIANCHI [1]

 

  • A execução penal num sistema integrado de direito penal

Existe um certo consenso no sentido de que as alterações da lei de execução penal são aplicáveis retroativamente, não importando se são favoráveis ou prejudiciais ao condenado. Aqui não incidiria o princípio da irretroatividade da lei penal (CF, art. 5, XL).

Ocorre, porém, que o direito penal material, o direito processual penal e a execução penal são interdependentes, pois constituem momentos ou fases de um mesmo fenômeno, que é o exercício e a concretização do poder punitivo estatal como forma de legitimação da pena pública.[2]

Nesse sentido, Paulo Queiroz propõe um “sistema integrado de direito penal, processo e execução penal”, cuja principal implicação é a incidência unitária dos princípios constitucionais em matéria penal, razão pela qual os princípios penais são também processuais penais e executórios e vice-versa[3].

Assim, a lei penal a que se refere a Constituição (CF, art. 5°, XL) é a lei penal em sentido amplo, compreendendo a lei penal em sentido estrito, a lei processual penal e a lei de execução penal. Afinal, “Sem crime, não há processo; sem processo não há pena. Crime-processo-pena foram, pois, uma trindade-unidade”[4].

Também a execução penal (provisória ou definitiva), por ser uma das etapas de realização do direito penal, deverá ser regida pelos mesmos princípios constitucionais.

Nesse sentido, o princípio da irretroatividade da lei penal tem a finalidade de:

Preservar o caráter garantidor do princípio da legalidade em seus vários momentos de concretização (penal, processual e execução), de modo que sempre que as modificações forem prejudiciais ao sentenciado, não poderão retroagir, só incidindo, em consequência, sobre os crimes consumados após a sua entrada em vigor[5].

Cabe destacar que durante a execução penal é ainda mais necessária a incidência do princípio da irretroatividade, pois é quando se verifica o menor grau de proteção jurídica, “e onde há maior vulnerabilidade, maiores devem ser os níveis de tutela legal (maior grau de garantismo), conforme o princípio da proporcionalidade”[6].

Desse modo, uma lei que, por exemplo, abolisse o livramento condicional ou dificultasse a progressão de regime, deveria ser imposta somente aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência, nunca antes. Aliás, é exatamente o que fez em parte o pacote anticrime, razão pela qual não poderá retroagir quando for prejudicial aos réus que cometeram crimes antes da sua entrada em vigor.

É possível dizer-se o mesmo quanto às faltas graves[7]? Também aqui incide o princípio da irretroatividade da lei penal? Se sim, como exatamente isso ocorre?

  • Soluções possíveis. Os exemplos das leis n 11.466/2007 e 13.964/2019

Existem ao menos três soluções possíveis: 1) considerar que a nova falta grave é aplicável independentemente da data do cometimento do crime ou da falta grave. A lei retroagiria ainda que prejudicial ao apenado. O princípio da irretroatividade não incidiria aqui; 2) considerar que só incide a nova falta grave para os crimes cometidos posteriormente à entrada em vigor da lei. Aqui o princípio da irretroatividade penal incidiria de forma ampla; 3) considerar que só há a nova falta grave se cometida depois da entrada em vigor da lei, não importando a data do crime. Afinal, antes da lei não existe violação à lei[8]. Aqui o princípio da irretroatividade penal incidiria de forma moderada.

Inicialmente, deve ser rejeitada a proposta do item 1, porque violaria o princípio da legalidade das penas e irretroatividade da lei penal. Logo, se o preso (provisório ou definitivo) comete uma infração que não figura no rol das faltas graves, não há falta grave a apurar.

A proposta do item 2, embora sedutora, também não é a mais correta. Se fosse acertada, uma alteração legislativa do artigo 50 da LEP que criasse uma nova modalidade de falta grave só deveria ser aplicável aos condenados (provisórios ou definitivos) cujos delitos tenham sido praticados depois da entrada em vigor da lei. Ou seja, o condenado poderia cometer diversas faltas graves já na vigência da lei nova, mas ainda assim ficaria impune.

Por que essa proposta não é correta?

É certo que o reconhecimento da falta grave poderá acarretar diversos prejuízos para o condenado, tais como: a alteração da data base para o cálculo de benefícios, regressão de regime (no caso dos regimes aberto e semiaberto), óbice ao reconhecimento de livramento condicional, o isolamento celular etc.

Apesar disso, essa solução não é a melhor.

De fato. Tomemos como exemplo a Lei nº 11.466/2007, a qual definiu como falta grave a ação de quem “tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo” (LEP, art. 50, VII).

De acordo com a proposta supra, os presos que cometessem delitos até a entrada em vigor da lei, não cometeriam falta grave, se fizessem uso de celular; já os que praticarem delito depois da lei e fizessem uso de aparelho telefônico incidiriam em falta grave. Haveria aqui tratamento claramente desigual, apesar do cometimento da mesma falta grave.

O mesmo problema haveria com a Lei 13.964/2019, ao introduzir o inciso VII no artigo 50 da LEP, e definir como falta grave a ação do condenado de: “recusar submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético.”.

Nesse caso, a nova falta grave somente poderia ser imposta àqueles que cometessem delitos depois da nova lei. Haveria dos tipos de presos: uns obrigados e outros desobrigados de fazer identificação do perfil genético. Somente os primeiros responderiam por falta grave. Os últimos não, apesar do cometimento da mesma infração durante a execução penal.

O mesmo ocorreria com a alteração do art. 52 da LEP pelo pacote anticrime, que agravou as condições do regime disciplinar diferenciado – RDD[9]. Se a solução do item 2 fosse correta, no caso de coautores de um crime doloso cometido na prisão, com condenações por delitos praticados em datas distintas, isto é, antes e depois da inovação legal supra, apenas aquele que praticou crime depois da nova lei estaria sujeito ao regime da Lei nº 13.964/2019[10]. O coautor que praticou crime antes da inovação legal estaria a tratamento legal mais brando, dado pela Lei nº 10.792/2003[11].

Em situação ainda mais díspar: caso um dos condenados cumprisse pena por crimes de 2002, e o outro de 2020, somente o segundo seria colocado em regime disciplinar diferenciado, enquanto que, ao outro, não caberia sansão nem da Lei de 2019, nem da Lei de 2003, não havendo previsão de RDD à época em que praticou o crime.

Consequentemente, a solução correta só pode ser aquela do item 3.

  • A aplicação prática do princípio

Quando se fala em irretroatividade da lei penal para o direito penal em sentido estrito, quer-se efetivar o princípio da legalidade, significando que, nas palavras do Código Penal, “não há crime sem lei anterior que o defina.”. Assim, se o indivíduo pratica ato antes da lei, ainda que moralmente repreensível, não se constitui crime; mas, se realiza a mesma conduta depois desta, está caracterizado o delito.

Por outro lado, quando pensada a irretroatividade da lei penal na execução, para o caso das faltas e do RDD, como demonstram os exemplos, a implicação seria de que, se indivíduos A e B cometessem a mesma conduta (a infração disciplinar), no mesmo dia, receberiam tratamentos distintos pela lei.

Neste caso, portanto, torna inviável a utilização do princípio, por três razões: primeiro, porque retiraria da norma a sua eficácia – aplicando-a a apenas uma parcela da população carcerária, não haveria controle sobre nenhuma conduta tida como indesejável no sistema penitenciário que fosse passível de ser punida com a homologação de falta; segundo, por violar o princípio da igualdade, e subverter a teleologia do próprio princípio da irretroatividade da lei penal em prejuízo, que se justifica sobretudo pela finalidade de garantir que as condutas que são repreensíveis a partir de hoje, não irradiem efeitos para um tempo pretérito quando não eram assim consideradas; e por fim, na prática, instauraria situação de caos nos estabelecimentos prisionais, com justificada revolta de quem sofrer punição por realizar o mesmo que aquilo que o colega de cela pode fazer sem ser penalizado.

  • Uma nova interpretação

Temos, pois, que a solução correta é de número 3: considerar a data da falta como o marco para além do qual a nova lei não pode retroagir.

Neste caso, considera-se o sistema executório (compreende-se aqui os estabelecimentos prisionais, as penas cumpridas em regime aberto, domiciliar, e penas restritivas de direitos), um microambiente penal, à semelhança da sociedade externa, onde as faltas constituem paralelo aos crimes e contravenções.

Voltando ao exemplo dos telefones celulares, supõe-se que um reeducando fosse encontrado fazendo uso do aparelho antes da Lei nº 11.466/2007, sendo anotada, à época, falta média. Após, com a mudança legislativa, não poderia haver readequação da conduta a fim de que se passasse a constar como falta grave[12]. Do mesmo modo, interno que praticasse ato de rebelião (subversão da ordem interna) antes da Lei nº 10.792/2003, não poderia ser submetido, depois, à regime disciplinar diferenciado em decorrência daquele ato. Ou ainda, apenado que estivesse em RDD desde antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, não poderia ter o prazo de fim das restrições estendido para dois anos, porquanto ainda deve ser regulado pela Lei nº 10.792/2003, que impõe período máximo de um ano.

O que se verifica, em verdade, é a mais inerente decorrência do princípio da legalidade: assim como não há crime sem lei anterior que o defina, também não há falta grave que não esteja tipificada; bem como se não há pena sem crime, não há sansão sem falta, lembrando os axiomas garantistas de Ferrajoli[13].

Com esta adaptação, estaria preservada a finalidade do princípio, bem como o objetivo por trás de um sistema integrado: assegurar que tanto o direito material quanto o processo e a execução sejam fundados em garantias que viabilizem a proteção jurídica do indivíduo contra os excessos do poder punitivo estatal.

À luz das reflexões apresentadas, ainda com a ressalva do caso particular das faltas e do RDD, é possível manter a teoria de um direito penal integral. Todavia, serão necessárias adequações às particularidades, não a mecânica operacionalização dos institutos de cada área em outra. O sentido que se propõe é a construção de um sistema penal mais garantista como um todo, com o cuidado de não subverter a sua finalidade na conversão da teoria ao caso concreto.

 

 

[1] Graduanda em Direito na Universidade de Brasília, Promotora Legal Popular, estagiária do Núcleo de Execuções Penais da Defensoria Pública do Distrito Federal, monitora da disciplina “Direito Processual Penal 1”, do Professor Paulo Queiroz.

[2] QUEIROZ, Paulo. Direito Processual Penal: por um sistema integrado de direito, processo e execução penal. Brasília: Editora Juspodium, 2018, p. 34.

[3] Ibidem, p. 31.

[4] Queiroz, Paulo. Direito processual penal. Introdução. Salvador: juspodivm, 2020, p.29.

[5] Ibidem, pp. 81-82.

[6] Ibidem, p. 82.

[7] Falamos de faltas graves, pois as leves e médias são definidas pelos Códigos Penitenciários dos Estados. Apenas as faltas graves, que ensejam punições mais severas, são definidas na Lei de Execuções Penais.

[8] Paulo Queiroz. Direito penal. Parte geral. Salvador: Juspodivm, 2020.

[9] Consiste em regime de cumprimento da pena em condições extremamente penosas para o interno que cometer novo crime doloso no curso da execução, ou que “ocasionar a subversão da ordem ou disciplina internas”.

[10] Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas, sujeitará o preso provisório, ou condenado, nacional ou estrangeiro, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:   (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – duração máxima de até 2 (dois) anos, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie;     (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

II – recolhimento em cela individual;       (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

III – visitas quinzenais, de 2 (duas) pessoas por vez, a serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, por pessoa da família ou, no caso de terceiro, autorizado judicialmente, com duração de 2 (duas) horas;      (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV – direito do preso à saída da cela por 2 (duas) horas diárias para banho de sol, em grupos de até 4 (quatro) presos, desde que não haja contato com presos do mesmo grupo criminoso;    (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

V – entrevistas sempre monitoradas, exceto aquelas com seu defensor, em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos, salvo expressa autorização judicial em contrário;    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

VI – fiscalização do conteúdo da correspondência;     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

VII – participação em audiências judiciais preferencialmente por videoconferência, garantindo-se a participação do defensor no mesmo ambiente do preso.    (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

[11] Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:                        (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003)

I – duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;                         (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

II – recolhimento em cela individual;                          (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

III – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;                         (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

IV – o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.                        (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

[12] Ademais, para a apuração das faltas, deve ser instaurado processo administrativo disciplinar, o qual pode ser sumário – para as leves e médias –, ou comum – para as graves –, tendo-se como prazo para sua conclusão 30 e 90 dias, respectivamente, o segundo prorrogável por igual período por uma vez (artigos 135, parágrafo único e 138 do Código Penitenciário do DF). No caso em que analisamos, não poderiam ser revistas as faltas cujo prazo já se esvaiu, por já ter ocorrido o arquivamento, ou por ter o interno já sofrido a punição respectiva (sob pena de configurar bis in idem). Contudo, para aquelas ainda em apuração, aplica-se o raciocínio descrito.

[13] Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 74-75.

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