Tratamento penal da embriaguez

18 de agosto de 2011

1)Introdução

A embriaguez é a perda total ou parcial da capacidade de autodeterminação em razão do uso de droga lícita ou ilícita. De acordo com o Código, somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade. Nos demais casos, o agente é, em princípio, culpável e punível.

Com efeito, a embriaguez pode ser voluntária (dolosa ou culposa) ou involuntária (acidental). Diz-se voluntária quando o agente faz livre uso de droga (lícita ou ilícita) e perde assim, total ou parcialmente, a capacidade de discernimento. Será dolosa – ou voluntária, segundo o Código – quando o autor fizer uso da substância com a intenção de embriagar-se; e culposa, quando, fora do caso anterior, embriagar-se por imoderação ou imprudência. E é preordenada quando o agente se embriaga com o fim de cometer crime.

Diversamente, considerar-se-á involuntária a embriaguez quando resultar de caso fortuito (v. g., desconhece que determinada substância produz embriaguez) ou força maior (v. g., é constrangido à embriaguez). Se se tratar de embriaguez involuntária completa, excluir-se-á a culpabilidade do agente que praticar um fato típico e ilícito. E se for o caso de embriaguez involuntária incompleta, hipótese em que, não obstante isso, preserva-se uma certa capacidade de autodeterminação, o agente responderá por crime, mas com pena reduzida de 1/3 a 2/3 (CP, art. 28, II, §2°).

2)Embriaguez involuntária

Conforme vimos, somente a embriaguez involuntária completa, isto é, que resulta de caso fortuito ou força maior, acarreta a exclusão da culpabilidade. Nesse exato sentido dispõe o art. 28, § 1º, do CP: “é isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Assim, somente é excluída a culpabilidade quando se provar que o agente estava ao tempo da ação inteiramente privado de discernimento em razão de embriaguez acidental, isto é, que não resultou de decisão própria.

Se se tratar de embriaguez involuntária incompleta, que ocorre quando o autor mantém certa capacidade de autodeterminação, a culpabilidade subsistirá, mas o agente fará jus à diminuição da pena de um a dois terços (CP, art. 28, § 2º): “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”

Enfim, a embriaguez involuntária completa é excludente de culpabilidade, razão pela qual isenta o autor de pena; já a embriaguez involuntária incompleta é apenas atenuante de culpabilidade, importando na diminuição da pena.

3)Embriaguez voluntária

No caso de embriaguez voluntária (dolosa ou culposa), completa ou incompleta, o agente responderá por crime, ainda que ao tempo da ação fosse inteiramente incapaz de autodeterminação, uma vez que, de acordo com o Código, não exclui a imputabilidade penal “a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos” (art. 28, II). Enfim, a embriaguez voluntária é, em princípio, penalmente irrelevante, uma vez que não isenta o réu de pena, nem a atenua.

Mas isso não quer dizer que sempre que o agente se embriagar dolosamente responderá por crime doloso, nem que o imprudente sempre responderá por crime culposo, pois em realidade responderá por crime doloso ou culposo, conforme tenha agido com dolo ou culpa, podendo ocorrer, inclusive, como é comum (v. g., crimes de trânsito), de, embora embriagado dolosamente, praticar crime culposo, bem como, embriagado culposamente, cometer crime doloso.1

Não se deve confundir, portanto, a vontade de embriagar-se com a vontade de delinquir.

Mas não só. A embriaguez voluntária não importa, necessariamente, em responsabilidade penal.

Com efeito, na hipótese de imprevisibilidade/inevitabilidade do fato, o autor não responderá penalmente mesmo que se encontre em estado de embriaguez voluntária (dolosa ou culposa, completa ou não), sob pena de responsabilização penal objetiva, situação incompatível com os princípios constitucionais penais. Assim, por exemplo, não responde penalmente o agente que vem a atropelar um pedestre imprudente que avance o sinal vermelho, se se provar a inevitabilidade do acidente, ainda que o condutor do veículo estivesse sóbrio. É que inexistirá nexo causal entre o estado de embriaguez e o acidente provocado. E mais: os crimes culposos pressupõem a criação de um risco proibido e a realização desse risco no resultado.

Enfim, a só condição de embriagado não implica responsabilidade penal necessariamente, razão pela qual o decisivo é apurar, em cada caso, se o agente se houve com dolo ou culpa.

Além disso, nada impede que o autor possa eventualmente invocar excludentes de ilicitude (legítima defesa etc.) ou de culpabilidade (erro de proibição inevitável etc.).

Em síntese: de acordo com o Código, somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade; nos demais casos, o autor é, em princípio, culpável e punível. Mas isso não significa que sempre que o agente se encontrar em estado de embriaguez voluntária será forçosamente culpável, visto que poderá se valer, em tese, de excludentes de tipicidade e de ilicitude e, inclusive, de excludentes de culpabilidade.

Consequentemente, o art. 28, II, do Código Penal, deve ser assim interpretado, a fim de evitar responsabilidade penal objetiva ou sem culpa: apesar de a embriaguez voluntária não excluir a culpabilidade, a imputação de crime ao agente embriagado pressupõe, inevitavelmente, a comprovação de todos os seus requisitos: tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Afinal, a embriaguez prova, em princípio, a embriaguez mesma, mas não a punibilidade inexorável da conduta.

Finalmente, diz-se preordenada a embriaguez – espécie de embriaguez voluntária dolosa, em que tem plena aplicação a teoria da actio libera in causa2 (ação livre na causa) –, quando o sujeito se embriaga (propositadamente) com dolo de cometer determinado delito. Uma vez provada a embriaguez preordenada, o agente, além de responder por crime doloso, terá a pena agravada (CP, art. 61, II, l), visto que a preordenação constitui uma circunstância agravante.3

E a embriaguez reconhecidamente patológica é equiparada à doença mental, aplicando-se ao inimputável a norma do art. 26 do CP.

1Convém evitar, assim, como assinala Mir Puig, o equívoco consistente em pensar que o delito cometido sob o efeito de embriaguez voluntária sempre tenha sido provocado voluntariamente (dolosamente), ou que a embriaguez culposa supõe que o delito que se comete nesse estado haja podido prever-se e se deva atribuir à imprudência. A embriaguez voluntária (não preordenada) pode dar lugar a um fato não só não querido previamente como sequer previsto ou previsível; e, do mesmo modo, a embriaguez culposa também pode motivar um fato imprevisível. Em suma: que o sujeito se tenha embriagado voluntariamente ou por imprudência não significa que, se pratica delito em tal estado, haja querido o fato nem que este era previsível, pois se pode querer ou prever a embriaguez sem querer nem ser previsível que se vai produzir a lesão de um bem jurídico (Derecho penal, cit., p. 605).

2A compreensão da teoria da actio libera in causa é controvertido. Narcélio de Queirós considerava que a teoria compreendia “os casos em que alguém, no estado de não imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever.” Teoria da “actio libera in causa”. Rio: Forense 1963, p. 37.

3De acordo com Francesco Carrara, se a embriaguez é preordenada ao delito, ou, como se disse, estudada, com razão poderá castigar-se ao culpável pelo que realizou em estado mental são, quando, com lúcida previsão e firme vontade, converteu-se a si mesmo em futuro instrumento do delito. A imputação retroage a tal instante e o que vem depois é consequência de um ato doloso; não se imputa o que fez o ébrio, mas o que fez o homem. Programa de derecho criminal, parte general, v. 1, cit., §343.

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12 Comentários

  1. Paulo,

    Espero que tudo esteja bem, o professor fez referência às controversias correlatas a teoria da actio libera in causa, e cita um doutrinador que a reconhece como plausível.

    Como o professor analisa a crítica do Zaffaroni a respeito, sobretudo, pela impossibilidade daquele que se coloca em estado de embriaguez controlar previamente os seus atos, visto que a embriaguez terá justamente efeito na conduta do sujeito.

    Suponhamos um caso extremo, no qual o indivíduo bebe para cometer um homicídio, mas chega a tal ponto de embriaguez que dorme,

    O exemplo caricato é indicativo das limitações dessa teoria, além da problemática de deslocamento da imputação para um ato que não é, como bem lembras, punível.

    Samuel Martins.

  2. Caro Samuel:
    Na verdade, eu não trabalho com a teoria da actio libera in causa, pois a considero desnecessária e bastante problemática. Creio que o problema essencial reside em saber se é possível imputar crime doloso a alguém no caso de embriaguez, independentemente de ser a embriaugue voluntária ou não.

  3. Muito bom esse texto Professor Paulo Queiroz, estava revisando a parte geral do CP e estava vendo justamente isso!
    É necessário fazer bem essa distinção sobre a embriaguez pois esta pode excluir a culpabilidade (embriaguez involuntária completa), servir de atenuante (embriaguez involuntária incompleta), ser penalmente irrelevante (embriaguez voluntária), servir de agravante (embriaguez preordenada) e pode tornar o agente inimputável (embriaguez patológica). Também gostei que o senhor ressaltou que mesmo o agente estando embriagado é possível se utilizar das excludentes de ilicitude, tipicidade e culpabilidade.

  4. Prezado Professor Paulo,
    Em minha ultima prova de Direito Penal constou a seguinte questao, que gostaria de sua resposta, para dirimir minhas duvidas. Segue a questao:
    – Fulano, apos haver ingerido, voluntariamente, quantidade excessiva de bebida alcoolica, totalmente embriagado, por descuido, joga uma guimba de cigarro, ainda em brasa, em uma cesta de papel, que guarnecia a residencia de sua avo, onde estava hospedado, dai resultando um incendio, que culmina com a morte de sua vo.
    Pergunta-se: processado pelo fato criminoso ora descrito, podera fulano ser apenado?
    * Fundamente com a indicacao dos dispositivos legais.

    Antecipadamente agradeco sua colaboracao.
    Att.,
    Ronaldo

  5. Caro professor tive a honra de tê-lo como professor (Uniceub) e agora estou na Pucamp, estou estudando esta matéria novamente e vi-me obrigada a buscar Doutrinas para complementar a aula do meu atual professor. Diante de inúmeras doutrinas a sua (como sempre) foi a que melhor explicou e exemplificou tirando assim todas as minhas duvidas. Parabenizo e agradeço pela excelente ferramenta de estudo disponibilizada, gratuitamente, na rede. Abraços

  6. Caro Professor, fui seu aluno na pós-graduação do IDP em 2012.

    Quanto à aplicabilidade da teoria da actio libera in causa, entendo que a sua necessidade ou desnecessidade está, inevitável, direta e obviamente, relacionada aos efeitos da embriaguez na capacidade de entendimento e determinação do agente.
    No que diz respeito a estes efeito, há autores de livros de medicina legal que consideram que toda embriaguez completa é comatosa como é o caso de Agripino Nóbrega em obra denominada “A justiça na repressão ao alcoolismo”, 1956. p. 40 – 41, segundo o qual “”um aniquilamento irremediável da consciência e da vontade, numa letargia ou estado comatoso do paciente”

    Partindo dessa premissa, a embriaguez completa a que se refere o código deveria ser interpretada como embriaguez comatosa, caso em que só seria possível o cometimento de crimes omissivos. Em consequência, todos os demais casos de embriaguez, deveria-se considerar que o agente conservaria alguma capacidade de entendimento e determinação e considerá-la para fins de imputabilidade. Isso afastaria, completamente a necessidade de aplicação da ficção jurídica da actio libera in causa.

  7. Caro Dr. Paulo gostaria de saber se já publicou artigo referente a Nova Lei Seca 12.760/12 ? O tema é polêmico. Mas em uma análise crítica, me parece que a referida lei fere alguns princípios de direito penal constitucional: intervenção mínima do estado, da lesividade ou ofensividade, da insignificância, etc.
    É óbvio que me refiro aos motoristas que ingerem pequenas doses (por exemplo 1 ou 2 chopp) e que não dirigem com excesso de velocidade, em zigue-zague, que não conseguem parar em pé ao descer do veículo.
    Agradeço pela atenção e abraços

  8. Boa noite, professor.

    Sempre me confundo com essa teoria. Primeiro no que diz repeito ao dolo e culpa, sempre tenho a impressão de que estão sendo analisados na culpabilidade, quando da aplicação dessa teoria. Por que falar em dolo ou culpa para definir se o agente pode ou não ser imputável se tais elementos subjetivos não estão na culpabilidade?

    Daí provem minha segunda dúvida. Se, por exemplo, em estado de embriaguez voluntária (dolosa) e completa, o agente comete um homicídio doloso, mas que, no momento da embriaguez, era inexistente a previsibilidade objetiva de que tal resultado poderia acontecer uma vez embriagado o agente. Segundo essa teoria, ele responderá ou não pelo crime?

    Obrigado!

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