O Código de Processo Penal (art. 2º) dispõe que “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.
Justo por isso, a doutrina considera, em geral, que a nova lei processual penal pode incidir sobre investigação ou processo relativo a delito cometido antes da sua entrada em vigor, ainda que em prejuízo do réu. Assim, por exemplo, se uma determinada lei passasse a considerar como hediondo determinado crime, aumentando-lhe a pena cominada, e, além disso, proibisse a liberdade provisória, deveria ser aplicada quanto à parte processual (proibição de liberdade provisória), embora o mesmo não pudesse ocorrer quanto à parte penal (equiparação a crime hediondo e aumento de pena). Também por isso, a extinção de um recurso, como ocorreu com o protesto por novo júri em 2008 (exclusivo do réu condenado a pena igual ou superior a 20 anos), atingiria todos os processos em curso, independentemente da data do delito.
Temos, porém, que o princípio da irretroatividade deve também compreender a lei processual penal. Assim, sempre que a nova lei processual for prejudicial ao réu, porque suprime ou relativiza garantias – v. g., adota critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares, veda a liberdade provisória, restringe a participação do advogado etc. –, limitar-se-á a reger as infrações penais consumadas após a sua entrada em vigor; afinal, também aqui, a lei deve cumprir sua função de garantia, entendendo-se como menos benéfica toda norma que importe em diminuição de garantias, e por mais benéfica a que implique o contrário: aumento de garantias processuais.1
Contrariamente, sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao réu – v. g., passa a admitir a fiança, amplia a participação do advogado, admite novos recursos etc. –, terá aplicação retroativa.
Tratando-se de normas meramente procedimentais, que não impliquem aumento ou diminuição de garantias – como ocorre com regras que modificam a competência ou alteram a forma de intimação –, terão igualmente aplicação imediata, alcançando o processo no estado em que se encontra e respeitados os atos validamente praticados. Assim, se, por exemplo, for abolida a prerrogativa de foro para determinada autoridade, o inquérito ou ação penal serão imediatamente remetidos para o novo juízo ou tribunal competente. Se a sentença já houver transitado em julgado, proceder-se-á à sua execução pura e simples.
Em suma, ao menos para fins de aplicação da lei no tempo, é irrelevante a distinção entre lei penal e lei processual penal, visto que uma e outra cumprem a mesma função político-criminal, de proteção do mais débil (o acusado) em face do mais forte (o Estado), não podendo a lei ser garantista num momento (penal) e antigarantista noutro (processual). Ou seja, o que importa não é a natureza jurídica da norma – se penal, se processual penal, distinção nem sempre fácil –, mas o quanto de proteção encerra. Além disso, as regras do jogo devem ser conhecidas antes de seu início, não podendo ser modificadas depois de iniciado, salvo para favorecer o réu.
Imagine-se que uma lei defina como hediondo determinado crime, cominando-lhe pena mais grave, proíba a substituição da prisão por medida cautelar diversa e altere o procedimento. Nesse caso, a nova lei não poderia ser aplicada de imediato, exceto (em tese) quanto ao procedimento.
Mas, se a lei fizesse o contrário, isto é, abolisse o caráter hediondo, cominasse pena mais branda, passasse a admitir a substituição da prisão por medida cautelar diversa e adotasse procedimento mais favorável ao réu, haveria de retroagir no todo.
Cuidando-se de normas de conteúdo misto – em parte favorável ao réu e em parte não –, vale o que já se disse sobre a irretroatividade da lei penal, sendo também admitida a combinação de normas (anterior e posterior). Mas não sendo isso possível, em razão do caráter unitário da alteração levada a efeito, a eleição da norma aplicável ao caso deverá ter em conta o significado político-criminal prevalecente da reforma para os interesses concretos do acusado.
Exemplo disso foi dado pela Lei nº 9.271/96, que, modificando a redação do art. 366 do CPP, determinou que, quando o réu, citado por edital, não comparecesse em juízo nem constituísse advogado, ficariam suspensos o processo e o prazo prescricional. Assim, enquanto a parte relativa à suspensão do processo é favorável ao réu, por implicar aumento de garantia, já que a redação original do art. 366 previa o prosseguimento do feito no caso de citação por edital e revelia, a parte alusiva à suspensão do prazo de prescrição lhe era prejudicial, pois antes a prescrição corria normalmente. Nesse caso, a combinação de normas é impossível, uma vez que a suspensão do prazo prescricional pressupõe logicamente a suspensão do processo. Daí ter decidido o STF que a reforma introduzida pela Lei nº 9.271/96 era irretroativa, visto que no todo era prejudicial aos interesses do acusado.
Finalmente, a retroatividade da lei processual penal mais favorável deve ser admitida, em princípio, até a sentença, sob pena de preclusão. Aqui não há, portanto, a possibilidade (que existe no direito penal) de aplicação da nova lei após a constituição da coisa julgada, em virtude da validade dos atos praticados sob a vigência da lei anterior.
Em conclusão, a lei processual penal é aplicável imediatamente (CPP, art. 2°), exceto se for prejudicial ao acusado, hipótese em que será aplicada apenas às infrações penais consumadas após a sua entrada em vigor.
Quer se trate de lei penal, quer de lei processual penal, o princípio é o mesmo: a lei não poderá retroagir para prejudicar o réu.
retroatividade da Lei de Execução Penal
O mesmo deve ser dito, mutatis mutandis, quanto à Lei de Execução Penal, porque também aqui se trata de preservar o caráter garantidor do princípio da legalidade em seus vários momentos de concretização (penal, processual e execução), de modo que sempre que as modificações forem prejudiciais ao sentenciado, não poderão retroagir, só incidindo, em consequência, sobre os crimes consumados após a sua entrada em vigor.
Exemplo disso foi dado pela Lei nº 10.792/2003, que, alterando a Lei nº 7.210/84, introduziu (art. 52) o regime disciplinar diferenciado,2 que consiste no cumprimento da pena em condições extremamente penosas para o preso, regime a ser imposto exclusivamente àqueles que cometeram delito após a sua vigência, e não antes, sob pena de violação ao princípio da legalidade da pena.
Aliás, aqui, mais do que no processo de conhecimento, importa respeitar o princípio, pois é na execução penal onde se verifica o maior déficit de proteção jurídica (menor grau de garantismo), tal é a relativização ou inexistência mesma das garantias que o informam. E onde há maior vulnerabilidade, maiores devem ser os níveis de tutela legal (maior grau de garantismo), conforme o princípio da proporcionalidade.
E os princípios devem repercutir unitariamente, porque, apesar da distinção, direito penal, processo penal e execução penal constituem fases de um mesmo fenômeno, que é o exercício do poder punitivo estatal, destinados a legitimar uma forma especial de violência: a pena.
1No mesmo sentido: Aury Lopes Júnior (Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2017), Fernando da Costa Tourinho Filho (Manual de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2017), Alberto Binder (Introdução ao direito processual penal. Rio: Lumen juris, 2003) e Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya (Introdução ao Direito Penal. Fundamentos para um Sistema Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007).
2Dispõe o referido art. 52 que “a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, ao regime diferenciado”. Nesse caso, o preso será recolhido “em cela individual” (inciso II), com “direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol” (inciso IV), de modo que só poderá ficar isolado por vinte e duas horas diárias.