Responsabilidade penal do índio

29 de outubro de 2014

Quando, fora das hipóteses indicadas (ver direito penal indígena), houver de incidir o direito penal oficial, o índio responderá nos termos da Constituição, dos tratados e acordos internacionais e da legislação penal em vigor, que lhe dão tratamento jurídico especial.

Como é óbvio, a responsabilidade penal do índio pressupõe o cometimento de infração penal (crime ou contravenção) com todos os seus elementos constitutivos (tipicidade, ilicitude e culpabilidade).

Trata-se, porém, de um processo de imputação que, além de considerar a singularidade da cultura indígena, terá de levar em conta a especificidade do tratamento constitucional e legal, notadamente o estatuto do índio.

Justamente por isso, não há, em princípio, fato típico quando o agente pratica conduta de acordo com suas tradições, costumes e crenças. Assim, por exemplo, não existe estupro de vulnerável (CP, art. 217-A) no âmbito de certas comunidades indígenas onde o acasalamento ocorre antes de 14 anos de idade. Cuida-se de fato atípico. Tampouco é típica a pesca ou caça, entre outras atividades inerentes à tradição indígena, que poderiam (em tese) configurar crime ambiental.

Naturalmente que essa relação entre proteção de direitos fundamentais e respeito à diversidade étnica e cultural – a refletir diretamente sobre a definição social e legal de crime – é das mais tensas e problemáticas. Basta lembrar que a prática do infanticídio ou homicídio1 (objeto do PL 1057/2007 ou Lei Muwaji), motivado pelas mais diversas razões (deficiência física ou mental, gêmeo, filho de mãe solteira etc.), tem sido registrada em diversas etnias.2

O mesmo vale, mutatis mutandis, para a verificação da ilicitude e da culpabilidade, as quais, além de exigirem a presença de todos os pressupostos e requisitos legais, devem ser valoradas de acordo com as peculiaridades da cultura indígena.

No entanto, ao contrário do que pretende a doutrina, a imputabilidade penal do índio não depende do grau de integração à cultura dominante. Como escrevem Ela Wiecko de Castilho e Paula Bajer Costa, “no paradigma da plurietnicidade o grau maior de integração do indígena à sociedade nacional não o descaracteriza com indígena, tampouco exclui a imputabilidade penal”3.

Também Augusto Silva Dias tem que “aparentemente mais favorável e aberta às peculiaridades das formas de vida, esta solução assenta numa visão racista e paternalista que não respeita a diferença de culturas e uma perspectiva multicultural de abordagem dos problemas baseada no valor do pluralismo. Hierarquizando as culturas em ‘civilizadas’ e ‘selvagens’ a concepção que criticamos eleva as primeiras a padrão de vida boa. Consequentemente, os membros das culturas ‘selvagens’ são rotulados de débeis mentais, detentores de um desenvolvimento mental incompleto, incapazes de entender as ‘virtudes’ ínsitas naquele padrão.”4

Com efeito, independentemente do grau de socialização, o índio é, sim, imputável, imputabilidade que há de ser apreciada segundo a sua tradição, e não conforme os valores eurocêntricos da cultura dominante. Logo, não é incapaz de autodeterminação em razão de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, mas plenamente capaz. O índio será inimputável apenas quando portador de transtorno mental grave (CP, art. 26) ou menor de 18 anos.

O que poderá ocorrer eventualmente é a falta de conhecimento da proibição jurídico-penal de que se trata, a ensejar o erro sobre a ilicitude do fato (art. 21), vencível ou invencível, conforme o caso, a ser aferida mediante laudo antropológico.

O Código Penal do Peru trata dessa hipótese sob o título de erro de compreensão culturalmente condicionado:

Artigo 15.- Erro de compreensão culturalmente condicionado

Quem, que por sua cultura ou costumes, comete um fato punível sem poder compreender o caráter delituoso de seu ato ou determinar-se de acordo com essa compreensão, é isento de responsabilidade penal. Quando, por igual razão, essa possibilidade tiver diminuído, a pena será atenuada.

Mas o neologismo é desnecessário; haverá (ou não), simplesmente, erro de proibição, por carecer o autor, índio que é, do conhecimento da proibição.

Evidentemente que o índio poderá também invocar, e com maior razão, outras excludentes legais ou supralegais de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade, sempre que presentes seus elementos constitutivos.5 O mesmo ocorrerá quanto às causas especiais de isenção de pena ou extintivas da punibilidade (prescrição etc.).

1Augusto Silva Dias, ao tratar de casos semelhantes ocorridos em Guiné-Bissau, considera que o fato é atípico, por ausência de dolo. Diz textualmente: “O agente ou agentes que colocam o “ucó”, ou o ser sob suspeita, junto da água do rio ou do mar, tendo em vista, respectivamente, afastá-lo da família ou obter a prova decisiva, realizam objectivamente o tipo de ilícito do homicídio (artº107 do CP) na forma tentada ou consumada, consoante o processo causal se quedar no perigo concreto para a vida ou desembocar no resultado morte. Sendo o homicídio um crime de “forma livre”, no tipo cabe perfeitamente a exposição ao perigo daquele modo praticada.Todavia, em minha opinião, o tipo subjectivo do homicídio não se encontra realizado. Com efeito, as mulheres da família da mãe que pretendem afastar o mau espírito não querem desde o início causar a morte de uma pessoa. Como tivemos oportunidade de compreender através das inquirições realizadas e tenho vindo a assinalar ao longo da exposição as agentes não querem matar, ou por qualquer outra forma hostilizar “outrem”, mas tão só afastar um ser que de humano apenas guarda a aparência. A partir do momento em que, segundo as crenças partilhadas, as pessoas implicadas estão convictas de que se trata de uma pessoa e não de um “ucó” recolhem-na imediatamente e levam-na consigo de volta, como vimos. O que as agentes representam é um ente sobrenatural e não um ser humano. Não há, pois, dolo em qualquer das suas modalidades.” SILVA DIAS, Augusto. Problemas do direito penal numa sociedade multicutural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau. Coimbra: Coimbra Editora, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6, nº 2, abrl/jun 1996.

2 Semelhante prática tem sido observada, por exemplo, entre tapirapé, suruwaha e yanomami.

3 O projeto de Lei do Senado n° 156, de 2009, que institui novo Código de Processo penal e os crimes praticados contra indígenas ou por indígenas. Brasília, a 46, n°183 julho/set 2009. Também Luiz Fernando Villares tem que “considerar o índio deficiente mental ou similar é profundamente equivocado, pois “o índio, mesmo os de pouco contato com a sociedade brasileira, sempre teve o desenvolvimento mental absoluto de suas faculdades mentais e condições de entender o mundo que o cerca. Pertencer a uma cultura de valores diversos dos nossos não produz um indivíduo de incompleto desenvolvimento. Para aquelas atividades necessárias à sua vida, o índio se adaptou com eficiência, o que lhe garantiu a sobrevivência até os dias atuais.” Direitos e povos indígenas. Curitiba: Juruá, 2009, p. 299.

4 Augusto Silva Dias, Augusto. Problemas do direito penal numa sociedade multicutural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau. Coimbra: Coimbra Editora, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6, nº 2, abrl/jun 1996.

5 Como observa Márcio Andrade Torres, “em nome de um Estado de direito democrático e do princípio da culpabilidade na sua vertente limitativa do poder punitivo estatal, o condicionamento cultural é fator que deve ser considerado na apreciação de qualquer conduta, podendo descaracterizar ora a tipicidade, ora a ilicitude e, por fim a culpa, onde encontra campo mais aberto a um freio no direito penal, em razão do alcance e natureza dos elementos que a compõem.” O lugar da cultura na culpabilidade dos índios (texto inédito).

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