Direito: uma ficção?

22 de maio de 2019

Parmênides disse “não se pensa o que não é” – estamos na outra extremidade e dizemos: “o que pode ser pensado há de ser, seguramente, uma ficção”. Nietzsche. Aforismo 539. Vontade de Poder. Rio: Contraponto, 2008, p. 282.

Direito e arte são formas distintas de retratar o ser humano e suas circunstâncias, sobretudo porque, enquanto o direito se ocupa de situações reais, visando a decidir e resolver conflitos também reais, a arte, especialmente o teatro, o cinema e a literatura, trata, em geral, da ficção, com motivação e fins diversos.

Mas não é de todo correto dizer-se que a literatura ou o cinema tratam da ficção, enquanto o direito cuidaria de casos reais, exclusivamente. É que existem obras literárias que relatam situações reais, a exemplo de A sangue frio, de Truman Capote. De fato, nesse famoso livro Capote narra a história da família Clutter, cujos quatro membros foram brutalmente assassinados por Perry Smith e Richard Hickock, na fazenda River Valley na cidade de Holcomb, no Estado do Kansas, Estados Unidos, em novembro de 1959. Os criminosos foram condenados à pena de morte e executados.

Para escrever o livro, e retratar essa tragédia com o máximo de precisão, Capote residiu por mais de um ano na região e entrevistou os moradores e principais personagens dessa história macabra, realizando uma investigação paralela. De acordo com Capote, “todo o material contido neste livro que não provém de minha própria observação ou foi retirado dos registros oficiais ou resulta de conversas com as pessoas diretamente envolvidas, entrevistas em geral realizadas ao longo de um extenso período.”1 Não é por acaso que o subtítulo de A sangue frio é um “relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências”.

O que distingue, então, a narrativa de Truman Capote da narrativa dos réus, das testemunhas, do promotor, do advogado, do juiz etc.?

Ademais, o direito em vários momentos recorre à ficção. Assim, por exemplo, quando adota a teoria da equivalência quanto ao erro sobre a pessoa e à aberratio ictus, quando dá vida às pessoas jurídicas, quando adota a continuidade delitiva, quando presume verdadeiros os fatos não contestados pelo réu etc. Também conceitos como liberdade, igualdade, presunção de inocência (de vulnerabilidade etc.) são ficções jurídicas, quer porque ninguém é absolutamente livre ou igual a outrem, mas apenas relativamente, quer porque o presumido inocente pode ser, inclusive, um criminoso confesso.

Vê-se, pois, que não é de todo exato afirmar que o direito trata da realidade e a literatura da ficção, visto que, independentemente de cuidarem de fatos reais ou imaginários, direito e literatura constituem, em última análise, formas de ficção, embora com fins, limites e consequências distintas.

Sim, porque, se pensarmos bem, nos daremos conta de que os juristas (profissionais do direito) pertencem a uma classe particular de contadores de histórias, afinal, juízes, promotores e advogados não fazem outra coisa senão contar suas próprias histórias a partir de outras tantas. Uns contam tragédias, outros, comédias; uns preferem o conto, outros, a novela ou o romance; e o fazem com maior ou menor imaginação, com maior ou menor talento, com maior ou menor honestidade.

Mas todos contam histórias e, pois, dão sua própria versão dos fatos. Sim, porque o que pretendem como simples “sentença”, “denúncia”, “testemunho”, “fatos” não é uma pura narração, mas uma construção, isto é, uma interpretação a partir do que a mente percebe e a memória retém. No direito, como na arte, nada é dado, tudo é construído.

Que são afinal os grandes advogados senão exímios contadores de histórias, e que, como bons contadores, contam-nas conforme o seu respectivo auditório (juiz, tribunal etc.), com ele interagindo e persuadindo-o? Enfim, que fazem os juristas senão contar histórias, mais ou menos verossímeis, mais ou menos exatas, no seu próprio interesse e no interesse de seus clientes (Estado, réu, vítima)?

Ademais, no direito e na arte, o modo como se conta uma história é mais importante do que a história mesma.

Trata-se, enfim, de uma história recontada conforme os nossos sentidos, as nossas necessidades, os nossos interesses, as nossas crenças, as nossas limitações. Não existem fatos; só existem interpretações (Nietzsche), mesmo porque o direito escreve roteiros que permitem aos atores grande margem de improvisação.2

Daí dizer François Ost que entre direito e literatura, solidários por seu enraizamento no imaginário coletivo, os jogos de espelho se multiplicam, sem que se saiba em última instância qual dos dois discursos é ficção do outro. Diz ainda que, ao invés de se afirmar que o direito se origina dos fatos (ex facto ius oritur), seria mais exato dizer ex fabula ius oritur: é da narrativa que sai o direito.3

De certo modo, portanto, o direito é uma espécie (sutilíssima) de ficção, mas que não percebemos como ficção.4

Também por isso, não surpreende quão arbitrários podem ser nossos juízos de valor, afinal em última análise interpretamos o mundo e tudo lhe diz respeito conforme o nosso grau de envolvimento e identificação com os personagens, dramas e temas em questão. Não é por acaso que tendemos a compreender e perdoar as pessoas de que gostamos e, pelos mesmos atos, abominamos aqueles que nunca vimos ou conhecemos; uns cometem “erros”, outros “crimes”. Não por outra razão é que a lei declara impedido ou suspeito o juiz segundo o grau de parentesco (ou amizade) com as partes do processo.

Parece mesmo que condenamos nos outros o que, conscientemente ou não, condenamos em nós mesmos; e absolvemos nos outros o que absolvemos ou toleramos em nós mesmos. Compreende-se, assim, que, no passado, os jurados absolvessem o marido que surpreendia a esposa em adultério e a matava, acolhendo a tese, que hoje rejeitam solenemente, de legítima defesa da honra.

Consequentemente, tão ou mais importante que a verdade processual e o conhecimento da legislação, é o tipo de relação/interação que se passa (nem sempre conscientemente) entre quem julga (e o que julga) e quem é julgado (e o que é).

Naturalmente que entre direito e arte há muitas diferenças. Faltam, em geral, ao direito e aos juristas, por exemplo, a criatividade e a subversão que caracterizam a (grande) arte. Como escreve Flávio Kothe, “arte é transcendência, não no sentido religioso de advento de uma instância metafísica, e sim no duplo sentido de arrancar o sujeito de sua circunstância e permitir o acesso a algo além do aqui e agora. A arte é sempre subversiva, no sentido de arrancar o sujeito da tirania de sua circunstância e de seu conformismo (…). Somente pode ser gerada a partir de uma experiência de choque e de uma vivência de exclusão. Ela é a elaboração de um abismo o qual separa o sujeito de sua circunstância e o leva ao espaço privilegiado de alguma espécie de moldura, dentro da qual ele opera o seu milagre criativo.”5

Também por isso, o artista dispõe de uma liberdade de criação muito superior àquela dos juízes e tribunais.

Por tudo isso, talvez tenhamos mais a aprender com a literatura, o teatro, o cinema, a música, a arte, do que com os livros técnicos, sobretudo nos dias atuais em que a doutrina tende a não doutrinar, mas a repetir precedentes judiciais, servilmente. E para entender o direito, é preciso ir além do direito.

1. A sangue frio. São Paulo: Companhia das letras, 2011, p. 17 (agradecimentos).

2. François Ost. Contar o Direito: as fontes do imaginário jurídico. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2005, p. 44.

3. Idem, p. 24.

4. Eis, a propósito, um dos sentidos possíveis de ficção: “relato ou narrativa com intenção objetiva, mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato etc.” Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, 1. ed., p. 1.336.

5. O Cânone Republicano II. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 473.

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