Direito processual penal (revisto)

2 de maio de 2016

Do ponto de vista legislativo, é relativamente fácil distinguir direito penal e direito processual penal: o direito penal é parte do ordenamento jurídico que define os crimes e comina as penas; e o processo penal, que é uma dimensão ou desdobramento do direito penal, é a parte do ordenamento jurídico que estabelece a forma e os meios de investigação, processamento e julgamento das infrações penais.

O artigo 121, caput, do Código Penal, por exemplo, ao definir o crime de homicídio simples (matar alguém) e cominar a respectiva pena (reclusão, de 6 a 20 anos), é uma norma penal; já o art. 4° do Código de Processo Penal é uma típica norma processual penal:

A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Simplificadamente, portanto, a legislação penal diz o que é crime e qual é sua pena, enquanto a processual penal diz como investigá-lo, processá-lo e julgá-lo legitimamente.

Além de definir crimes e cominar penas, o direito penal dispõe sobre os princípios fundamentais que regulam a atividade penal do estado e prevê os institutos indispensáveis ao exercício desse poder: crime, pena, dolo, culpa, autoria, participação etc.

De todo modo, a distinção é perfeitamente possível no plano da legislação. Mas mesmo aqui é possível questionar a natureza penal ou processual penal de certas normas, se penais ou processuais penais.

Afinal, também o Código Penal, que contém a legislação penal fundamental, prevê normas de caráter processual. De acordo com o artigo 100 do CP, por exemplo, a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. E é pública condicionada quando a lei exige representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça. 

Ademais, nem sempre é fácil distinguir normas penais de processuais penais, como as que dizem respeito: 1)à suspensão condicional da pena (CP, art. 107); 2)ao livramento condicional (CP, art. 83); 3)aos efeitos da condenação (CP, art. 91 e 92); 4)à reabilitação (CP, 93 a 95); 5)à extinção da punibilidade (CP, art. 107); 6)ao perdão judicial (CP, art. 120). A indicação poderia prosseguir, citando as figuras do agente infiltrado, da colaboração premiada, dos regimes de cumprimento de pena, da prescrição etc.

Esses institutos têm, no mínimo, conteúdo misto: penal, processual penal e/ou executório. Caberia referir ainda a reincidência e outros com tríplice repercussão: penal (individualização da pena), processual (decretação de prisões) e executória (progressão de regime).

Se é relativamente fácil, ou pensávamos que o era, distinguir direito penal de direito processual penal, de uma perspectiva dinâmica, porém, há uma tal interação entre os dois ramos do direito que a distinção parece inconsistente. Aqui a separação é mais aparente do que real.

É que o direito penal não é autoaplicável ou não é voluntariamente aplicável, ao contrário do que se passa no direito e processo civil. Porque somente por meio do processo é possível determinar se há ou não há um crime, quem é seu autor, se existe uma conduta típica, ilícita, culpável e punível. E, uma vez comprovada a punibilidade do crime, poder-se-á aplicar uma pena e submeter o condenado à sua execução forçada.

Não há, pois, crime sem pena, nem pena sem processo – nullum crimen, nulla poena sine iudicio. O processo é o processo de construção – ou desconstrução – jurídica do crime.

Daí dizer-se que entre direito penal e direito processual penal há uma relação de mútua referência e complementariedade funcional1: um e outro prestam-se à definição legal da culpa penal.

Com efeito, o crime não existe a priori, mas a posteriori, por meio do processo; o processo penal é, pois, o modo constitucionalmente legítimo de realização do direito penal. Realizar o direito não significa aqui condenar o réu, mas concretizar uma decisão justa, isto é, conforme a lei penal e as garantias do devido processo legal. Uma decisão justa pode ter conteúdo variadíssimo: condenação, absolvição, anulação do processo, reconhecimento de prescrição etc.

Mas é importante perceber que, ao recorrer à dogmática penal e processual penal, o juiz não se limita a constatar um crime e aplicar-lhe uma pena, mas a construí-lo socialmente, afinal, o direito e, pois, o crime, não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação do fato punível não é um modo de constatar ou desvelar um direito ou um crime preexistente, mas a forma mesma de produção do direito e do crime. Porque o sentido das coisas (fatos, provas, textos etc.) não é dado pelas próprias coisas, mas por nós, ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibilidades – aí incluída a falta de sentido inclusive.

Assim, o processo, ao dispor sobre o modo como se dará a investigação, o processamento e o julgamento dos crimes, estabelece as condições de legitimação – e também de deslegitimação – da jurisdição penal, que é o poder de dizer o direito no caso concreto.

Nesse sentido, o processo penal é um continuum do direito penal, ou seja, é o próprio direito penal em movimento, razão pela qual formam uma unidade, um todo indissociável. Afinal, não há direito penal sem processo penal, nem processo penal sem direito penal.

Porque rigorosamente falando não existem fenômenos criminosos, mas uma interpretação criminalizante dos fenômenos.2 Consequentemente, não existem fenômenos típicos, antijurídicos, culpáveis e puníveis, mas uma interpretação tipificante, antijuridicizante, culpabilizante e punibilizante dos fenômenos.

A interpretação é, pois, o ser do direito; e o ser do direito é um devir. O direito, com ou sem alteração dos textos legais, está em permanente mutação. A rigor, o direito não está nos fatos nem nas leis, mas em nós. O direito é em nós que ele existe.

Em síntese, a concreta definição da culpa penal se dá no processo e por meio do processo.

Justamente por isso, a relação entre direito penal e processo penal não é apenas instrumental, mas substancial. Como ensinava Calmon de Passos, “não há um direito independente do processo de sua enunciação, o que equivale a dizer-se que o direito pensado e o processo do seu enunciar fazem um.”3

O processo, por sua vez, não pode traduzir o exercício arbitrário do poder de punir; deve antes consistir num procedimento dialético capaz de assegurar um confronto de teses e antíteses a um tempo franco, aberto e igual entre as partes. O due processo of law, em suma.

Com efeito, o processo é uma espécie de arena onde devem ser asseguradas as condições de um combate justo e democrático, como pressupostos de validade e legitimidade. Terminada a disputa, o juiz declarará o vencedor e o vencido e as consequências jurídicas da contenda judicial, além de decidir sobre a própria regularidade da contenda.

Que resulta da unidade ou circularidade dessa relação?

Possivelmente o mais importante é que os princípios devem incidir de modo unitário, porque os princípios penais são princípios processuais penais e vice-versa. A vedação da prova ilícita e o princípio do juiz natural, por exemplo, não são senão o princípio da legalidade penal, embora com outro nome. E os princípios da intranscendência, nemo tenetur se detegere e ne bis in idem têm repercussão penal, processual penal e executória.4

O que muda é a intensidade e o modo como incidem em cada fase do processo e da execução penal. O princípio da verdade, por exemplo, comporta graus: a verdade que se requer para receber uma denúncia não é a mesma que se exige para a condenação. A verdade sofre ainda variações conforme o rito processual: ordinário, sumário e sumaríssimo.

Também não faz sentido tratar diversamente o princípio da irretroatividade da lei: quer se trate de norma penal, quer de norma processual, há de retroagir sempre que for mais favorável ao imputado, ainda que com alguns ajustes.

Ademais, os constrangimentos previstos na legislação processual jamais podem exceder àqueles que resultariam da própria condenação, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade. Assim, por exemplo, não é possível a prisão processual se a respectiva infração penal não cominar pena privativa da liberdade ou admitir a substituição por pena restritiva de direito.

Já o princípio in dubio pro reo, tradicionalmente associado à valoração da prova, é também um princípio penal porque constitui uma dimensão da presunção de inocência. Assim, quando houver fundada dúvida, por exemplo, sobre se há dolo, preterdolo ou culpa, deverá prevalecer a tese mais favorável ao réu.

E mais: é ônus da acusação, e não da defesa, fazer prova dos fatos alegados na denúncia/queixa, ou seja, é seu dever demonstrar o cometimento de uma infração penal punível com todos os seus elementos constitutivos (fato típico etc.). Não se prova a inocência, mas a culpa.

Por fim, também a execução penal, última etapa de realização do direito penal, há de reger-se pelos princípios constitucionais do direito e processo penal. Assim, modificações legislativas criadas em desfavor do condenado não podem atingir as condenações por crimes cometidos anteriormente à sua entrada em vigor, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa (v. g., uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência).

Em conclusão, e contrariamente à doutrina e à jurisprudência ainda hoje dominantes, os princípios penais são também aplicáveis ao processual penal e à execução penal e vice-versa, ainda que com graus diversos de incidência.

Afinal, direito penal, processo penal e execução penal constituem momentos de um mesmo fenômeno, que é a concretização e o exercício do poder punitivo estatal, destinados a legitimar/deslegitimar uma forma especial de violência: a pena, a qual pode variar de uma simples multa à pena de morte, que é uma espécie de assassinato legal.

Em suma, como têm uma fundamentação constitucional comum, os princípios contaminam todo o direito infraconstitucional, ainda que diversamente.

1

Jorge de Figueiredo Dias. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra editora, 1974.

2

Estou parafraseando Nietzsche, que disse (Além do bem e do mal, aforismo 108): “Não existem fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos”.

3

Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de processo, n° 102. São Paulo: RT, 2001, ano 26, abril-junho de 2001.

4 O princípio da não auto-incriminação (nemo tenetur se detegere, nemo tenetur ipsum accusare, privilegie against Self-Incrimination etc.), inerente à ampla defesa e à presunção de inocência, assegura ao suposto autor de crime (investigado, denunciado, testemunha) o direito de não produzir prova contra si mesmo. Significa que o possível acusado de infração penal pode ou não colaborar com a investigação; mas, se não quiser cooperar, ninguém poderá obrigá-lo a tanto, razão pela qual, quando houver ilegal constrangimento, a confissão ou prova assim obtida será ilícita e arbitrária a eventual prisão. O nemo tenetur tem, portanto, caráter essencialmente negativo, pois consagra um direito de não fazer, de não colaborar, mas não um direito de fazer; é assegurada, por conseguinte, uma omissão, não uma ação. Justamente por isso, não se presta a justificar condutas como destruição de provas (queima de documentos, remoção de sangue do local do crime etc.). Não fosse assim, aliás, seria possível (em tese) invocá-lo para legitimar os mais diversos crimes, a exemplo da morte da testemunha que presenciou o homicídio e a respectiva ocultação do cadáver.

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