Diálogo sobre a verdade

26 de setembro de 2008

O Sr. é o melhor pai do mundo”! Disse-lhe a criança.

Bem, isso não é bem verdade, filha, respondeu-lhe o pai.

Como assim?

É que eu não sou o único pai do mundo e estou certo de que existe um sem número de pais bem melhores do que eu; mais: certamente há um bilhão de filhos que dizem o mesmo sobre seus pais e talvez seus próprios pais e irmãos não concordem.

Sei, mas eu sou sincera!

As outras crianças também o são.

O Sr. quer dizer então que eu estou mentindo?

Não é bem assim…

É isso mesmo, o Sr. está me chamando de mentirosa! Gritou indignada.

Acho que não me expressei bem; quis dizer que sua afirmação, embora sincera, não é exata. Sua afirmação só seria verdadeira se você fosse filha de todos os pais do mundo, tivesse convivido com todos eles e só então poderia concluir: “você é o melhor pai do mundo”, com exclusão de todos os demais. Mas essa experiência é impossível.

Eu não o entendo…

Nem eu tampouco…

Aliás, ainda que você tivesse um bilhão de pais, ainda assim sua conclusão seria certamente contestada por um bilhão de outros filhos, irmãos e pais inclusive, com a mesma legitimidade.

Mas eu estou dizendo a verdade; e você sabe o quanto eu o amo.

Claro. Quis dizer apenas que sua afirmação não é correta.

Dá no mesmo! Retrucou o filho mais velho, que a tudo ouvia.

Não creio. A rigor, sentimentos não são verdadeiros ou falsos, mas sinceros ou não. É que, como diz Kant, sobre esses assuntos não pode haver nenhuma regra de gosto objetiva que determine por meio de conceitos o que seja o belo, pois todo juízo proveniente desta fonte é estético, isto é, o sentimento do sujeito e não o conceito de um objeto é o seu fundamento determinante (Crítica da faculdade do juízo. imprensa nacional, 1998, p. 122).

Mas pensando melhor, acho que você tem razão. O que você diz é a mais absoluta verdade.

Agora é o Sr. que parece estar mentindo…

Não, estou sendo sincero. Sim, porque o que é afinal a verdade senão o ponto de vista de alguém, situado no tempo e no espaço, com pretensão de universalidade? Quem recorre à verdade pretende universal o que é particular, local. Enfim, a verdade é apenas um sintoma, um nome, um conceito.

Não entendi…

Quis dizer que a verdade é sempre “minha” verdade, “sua” verdade, “nossa” verdade, ou seja, é sempre uma verdade que exclui diversas outras num universo de representações (de verdades) possíveis, ainda quando as julgamos absurdas, infundas etc. Logo, não é a interpretação que depende da verdade, mas justamente o contrário: é a verdade que depende da interpretação.

Na realidade, antes da verdade existe uma vontade de verdade, e, pois, uma crença na verdade, uma crença na superioridade moral da verdade sobre a mentira, uma vontade de poder, vontade de fazer prevalecer uma dada opinião, isto é, vontade de autenticar palavras, situações, desejos com um nome quase sagrado: verdade. Como dizia Nietzsche, cada um tem a perspectiva que gostaria de impor como norma a todos os demais.

Parece-me, pois, que a única coisa realmente universal é o uso da palavra verdade, mas não o que ela pode significar em cada contexto, porque uma concepção da verdade para além do tempo e do espaço, logo, para além do homem, é uma mentira.

Concluo assim que você diz a verdade quando afirma que “eu sou o melhor pai do mundo”, mas também todas as crianças do mundo que dizem o mesmo para seus pais, ainda quando são eventualmente contestadas por seus irmãos, pais ou estranhos.

 

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13 Comentários

  1. Exceção a isso são as verdades matemáticas, afinal 2 e 2 são 4 agora e sempre, aqui e na China. As verdades matemáticas são universais.

  2. ” Quem ama o feio, bonito lhe parece.”
    ” O amor é cego, mas o vizinho não é. ”

    Compreendo que da pespectiva da filha é uma verdade incontestável. Do mesmo modo que o é da ótica de cada uma criança individualmente. Tudo é interpretação, hermeneutica ou exegese.

  3. Sem dúvida, caso exista uma verdade só pertence a Deus, no entanto, o que a filha precisava fazer é provar que o pai dela estava errado. E dois mais dois nem sempre são quatro.

  4. Não podemos confundir as leis da física, o mundo do ser, se você soltar uma maçã ela cairá, do mundo do dever ser, onde as metamorfoses das verdades são ambulantes…. ou seja, não podemos confundir realidade com verdade, o amor da filha de um pai indígena, não é o mesmo amor da filha de um pai executivo, são partes de uma realidade vivida individualmente, embora amem os pais como sendo os melhores do mundo. A verdade é complexa, é o conjunto de todos amores de todas as filhas que amam seus pais em um universo mais complexo ainda.

  5. Professor, grande aula na pós graduação de ciencias penais. A verdade é minha, outros alunos tiveram verdades diferentes, iguais, nem tão diferentes, nem tão iguais, ah várias verdades sobre um mesmo tema.

  6. Somos verdades. A Verdade nos criou. E nós, numa ação desenfreada a buscamos com nossas mais variadas forma de expressá-la. Resistimos muitas vezes quando a rejeitamos, mas no âmago, sabemos que o princípio da incompletude é negá-la.
    E a verdade é Deus.

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