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A propósito dos crimes de ultraje público ao pudor

O Capítulo VI do Título VI (do ultraje público ao pudor) prevê dois crimes: ato obsceno (art. 233) e escrito ou objeto obsceno (art. 234).

Trata-se de um capítulo que já não faz qualquer sentido nos dias atuais, visto que o ato obsceno não ofende gravemente a dignidade sexual de ninguém (no máximo, dá causa a algum desconforto ou constrangimento) e é passível de repressão suficiente no âmbito administrativo; e o escrito ou objeto obsceno, além de obsoleto, é francamente inconstitucional, por violar tanto a liberdade de autodeterminação sexual quanto a de manifestação artística e cultural (CF, art. 5°, IX).1

Com efeito, no que tange à liberdade de autodeterminação sexual, já vimos que o Estado não pode criminalizá-la sob nenhum pretexto; e no que se refere à liberdade artística e cultural, a Constituição (art. 5°, IX) prevê que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, razão pela qual, ao invés de sofrer restrição de caráter penal, cumpre assegurar-lhe o pleno exercício.

Ademais, rigorosamente falando, não existem fenômenos morais (ou imorais), mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos (Nietzsche), de modo que a distinção entre a boa e a má arte e entre o obsceno e o não obsceno não depende tanto da obra, mas da interpretação que recai sobre ela, uma vez que o caráter artístico de algo não é uma qualidade daquilo que designamos como tal, mas uma relação entre o sujeito e a coisa assim designada.

Mas isso não quer dizer que tais atividades não possam sofrer regulamentação administrava conforme a idade dos interessados etc. O que não pode ocorrer é a censura que importe, por exemplo, na proibição de determinados livros que supostamente ultrajariam o pudor ou seriam obscenos (v.g., livros de Sade ou Sacher Masoch).

Os tipos já não fazem também sentido por conta do advento da internet, espaço facilmente acessível em que se pode encontrar de tudo em termos de informação e imagem (erótica, pornográfica, obscena etc.), bem como do florescimento da indústria de filmes (e literatura) pornográficos e o surgimento de sex shops etc..

De mais a mais, quando se percebe alguém praticando ato obsceno em lugar público, o melhor a fazer é, em princípio, evitar o local, desviar os olhos ou convidá-lo a se conter ou a retirar-se, eventualmente com apoio policial, inclusive.

Finalmente, quanto à proteção de crianças e adolescentes, a Lei n° 8.069/90 já prevê diversos tipos penais (arts. 240 a 241-C).

1 No mesmo sentido do texto, Cezar Roberto Bitencourt (Direito Penal, cit., p. 191): “A nosso juízo, essa superada infração penal devia, de há muito, ter sido extirpada do direito positivo brasileiro, especialmente a partir da vigência da Constituição Federal de 1988, que tenta eliminar toda forma de censura às atividades artísticas e culturais.”. E Nucci: “Ademais, mantendo-se a vigência dos tipos incriminadores dos artigos 233 e 234, pode-se atingir problemas mais sérios, concernentes à liberdade de expressão artística, cultural e propagandística, afinal, não são poucos os casos de pessoas que se apresentam nuas ou semi-nuas, expondo a genitália para finalidades variadas. Desde a sessão de fotos em local público até aposição de cartazes com modelos em via pública. Sob tal enfoque, está-se entregando a avaliação desse grau de sutileza, entre o artístico-cultural-propagandística e o obsceno.” Comentários, cit., p. 170. De modo semelhante, Rogério Greco (Direito Penal, cit.).

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