Os homens são animais muito curiosos: reúnem em assembleia uma dúzia de fanáticos, digladiam entre si, lutam por coisas muito diversas e não raro insignificantes, nem sempre sabem exatamente pelo que brigam, mas brigam muito. Apesar disso, realizam um milagre: produzem um texto que condensa o resultado da luta. Batizam-no de Constituição, declaram-na a lei das leis, veneram-na, mitificam-na. A luta, porém, não cessa aí e a paz que proclamam é apenas aparente. A guerra prossegue por outros meios.
Dizem que isso e aquilo está ou não de acordo com a Constituição, quando, em verdade, o que fazem ou combatem está conforme as suas necessidades e interesses. É que de fato a tal lei das leis nada diz e tudo aceita ou recusa. São os homens, não as leis, que dizem alguma coisa. Não é a Constituição que proíbe, autoriza ou diz algo, mas aqueles que a interpretam e lhe dão sentido.
Mas esses animais que amam a ilusão preferem se valer desse ardil, então proclamam: isso está conforme a lei, aquilo está em desacordo com a lei. No fundo, sabem ou suspeitam que não é disso que se trata. Se cavarmos bem fundo, vamos sempre encontrar o homem como fundamento do fundamento.
Dizem venerar a lei, mas, em verdade, veneram a si mesmos, amam e defendem seus interesses, suas necessidades, e usam termos como “justiça” “liberdade”, “ética”, “moral”, “interesse público”, “direitos fundamentais” etc., arbitrariamente.
Leis, Constituições (etc.) são ficções humanas cujos sentidos são dados pelo poder de dar nome às coisas. Quem tem poder cria o direito, quem não o tem, sofre-o. Dizer que a lei diz isso ou aquilo é tão arbitrário quando dizer que Deus diz isso ou aquilo ou que Deus quer isso ou aquilo. É uma metáfora.
A vida é vontade de poder, e a vontade de poder interpreta (Nietzsche).